José Lutzenberger (1973)
A causa da grande crise ecológica que hoje assola nosso Globo e que ameaça não somente a sobrevivência humana, mas a própria continuação da vida, não reside na tecnologia em si, nem na ciência que possibilita esta tecnologia. A causa está em nossa filosofia, em nossas atitudes, em nossa definição de “progresso”.
Nosso comportamento é determinado por nossos valores. Esses valores influenciam nossa maneira de agir dentro do ambiente natural e determinam, assim, o tipo de tecnologia que desenvolvemos e a maneira como a aplicamos.
Se quisermos sair da atual situação desequilibrada que levará certamente ao desastre, necessitamos de uma revolução ética, de uma inversão de valores. A nossa ética, que hoje se limita às relações entre humanos, e muitas vezes às relações entre apenas pequenos grupos de humanos, terá que ser imensamente ampliada para incluir toda a Ecosfera, a grande unidade funcional que é o Caudal da Vida neste astro. Assim como não podemos assassinar impunemente nossos companheiros de espécie, os demais humanos, também não podemos assassinar impunemente a Natureza.
Como disse uma vez o grande Albert Einstein, devemos compreender que “uma pessoa humana é parte de um todo por nós chamado Universo, uma parte limitada no tempo e no espaço. Ela possui a si mesma, a seus pensamentos e sentimentos como algo separado do todo – uma ilusão de ótica de sua consciência. Esta ilusão é uma espécie de prisão para nós, nos limita em nossos desejos pessoais e à afeição às pessoas mais chegadas a nós. Nossa tarefa deve ser libertar-nos desta prisão pela abertura de nosso círculo de compaixão para abarcar todas as criaturas vivas e a Natureza inteira em sua beleza. Ninguém é capaz de conseguir isto completamente, mas a luta constituí em si mesma uma parte da liberação e uma base para a segurança interior”.
Devemos, portanto, chegar a uma ética inclusiva, uma ética ecosférica, que vai muito além dos mesquinhos problemas humanos imediatos, que abarca todos os seres vivos, uma ética que nos faz sentir responsáveis pela continuação do Caudal da Vida – do qual somos apenas parte integrante – uma ética como a dos grandes pensadores budistas, de São Francisco de Assis ou de Albert Schweitzer.
Como passo inicial devemos compreender que o inimigo somos nós mesmos. De nada adianta combater a grande fábrica poluidora, se continuarmos a praticar um estilo de vida que exige a instalação de sempre mais e maiores fábricas, de produtos e tecnologias com impacto ambiental cada dia mais brutal. As mais perfeitas medidas de controle da poluição serão impotentes diante da exponencial do “progresso” concebido em seus termos atuais; não evitarão a catástrofe.
Para os que ainda estão imbuídos da ideologia do crescimento e do desenvolvimento ilimitados, do progresso definido em termos meramente materiais e quantitativos, em termos de PNB (Produto Nacional Bruto), o que se segue é heresia, parecerá até ridículo. Mas todo aquele que compreendeu a essência da crise, todo aquele que tem a perspectiva ecológica, sabe da necessidade de atitudes radicalmente diferentes das atuais. Jamais se sentiria oprimida pela ética ecológica, muito ao contrário, sabe que esta ética libera verdadeiramente, porque significa harmonia e integração, não agressão e alienação, tão características da situação atual.
É claro que a transição para a sociedade equilibrada não poderá ser abrupta. O drogado não pode abandonar repentinamente a droga. É claro que muitas das normas que a seguir enumeramos, e que procuram apenas dar uma visão sinótica do que será necessário, são impraticáveis na situação atual. Mas, à medida que avança a conscientização ecológica geral, compreenderemos todos sua importância. Portanto, ainda que impraticáveis no presente momento, as novas atitudes devem entrar em nossas cogitações quanto aos alvos que perseguimos a curto, médio e longo prazo.
Aspectos filosóficos
Ainda que mergulhados na atual situação desequilibrada, nada nos impede a adoção da nova filosofia, nada nos impede o abandono dos valores da sociedade de consumo. Aprenderemos a ver o homem não mais como o dominador, o explorador implacável da Natureza, o homem como medida de todas as coisas. Com consciência ecológica, veremos a loucura de nosso atual proceder, chegaremos automaticamente a novas atitudes.
Nossa inteligência, mais desenvolvida e perspicaz que a de nossos companheiros de viagem nesta nave, proporcionou-nos o atual poderio tecnológico. Hoje é tal este poder que nos permite dominar ou eliminar todas as criaturas deste planeta, inclusive a nossa própria espécie. Este poder nos permite tomar em nossas mãos a continuação da sinfonia da evolução, de guiá-la a novas alturas ou de acabar com ela. Este imenso poder significa, portanto, uma tremenda responsabilidade para nós humanos. Não temos o direito de continuar agindo como moleques irresponsáveis, como macacos tecnológicos. Devemos agir com sabedoria.
Em toda forma de proceder que possa interferir seriamente no contexto natural, devemos refletir se estamos agindo eticamente, dentro dos preceitos ecológicos. Na nova ética, não mais antropocêntrica, estão incluídas todas as criaturas que habitam este planeta. Preceito fundamental desta nova ética é a preservação do funcionamento harmônico da Ecosfera, do grande sistema de suporte de vida da nave espacial Terra. Passaremos a examinar criticamente nossas concepções de “progresso”, de “desenvolvimento”. Examinaremos se estamos realmente agindo com sentido de responsabilidade diante de todos os seres, diante de nós mesmo e diante das gerações que nos sucederão.
Vida profissional
Como educadores, como religiosos ou como pais saberemos inculcar a ética ecológica, a responsabilidade ecosférica. Ensinaremos o amor pela Natureza, em todas as suas manifestações; [saberemos despertas reverência pela vida, por toda forma de vida]; saberemos abrir os olhos para a apreciação estética diante das maravilhas do mundo vivo; ensinaremos a integração do homem em seu ambiente natural.
O cientista, mesmo quando especialista estreito, procurará cultivar uma visão global, procurando compreender pelo menos os conceitos fundamentais de todas as demais disciplinas. Verá, assim, a sua especialidade dentro do contexto geral, saberá dialogar com outros especialistas, saberá trabalhar em nível interdisciplinar. Nunca se prostituirá na elaboração de tecnologias destrutivas, porque sua visão não setorializada, ecológica, restabelece o elo entre ciência e ética. O cientista de visão global nunca será aético.
Como engenheiros e tecnólogos examinaremos criticamente toda a tecnologia, tradicional ou nova, quanto a seu impacto ambiental. Saberemos distinguir entre custo meramente monetários e custos ambientais, diretos ou indiretos, presentes ou remotos. Preferiremos sempre tecnologias de impacto ambiental mínimo, procurando imitar, não hostilizar a Natureza. Evitaremos os enfoques setorializados, unilaterais e imediatistas. Nossa tecnologia se ajustará ao ambiente, porque já não estamos convencidos de que o ambiente deva ser violado para que se ajuste a nossas tecnologias. Procuraremos tecnologias permanentemente sustentáveis, evitando toda rapina que dilapida e degrada a Ecosfera. Nossas tecnologias se alimentarão dos juros, não do capital da Ecosfera. Não mais esbanjaremos materiais e energia, não mais profanaremos brutal e cegamente o que a Natureza soube criar de belo e fascinante.
O arquiteto projetará sempre em harmonia com a paisagem, não mais insistirá em, com maquinaria pesada, agredir a paisagem para que ela se ajuste à sua arquitetura, concebida no vácuo. Procurará formas arquitetônicas que propiciem o contato e a integração do homem com a Natureza.
Os agrônomos, veterinários, zootecnistas, técnicos florestais, paisagistas e jardineiros partirão para enfoque ecológicos, preferindo sempre as técnicas integradas e biológicas. Saberão zelar pela saúde do solo, pelo equilíbrio paisagístico, pela sobrevivência integral de flora e fauna e evitarão toda agressão química e mecânica, pois eles serão os elementos-chave no restabelecimento de relações harmônicas entre sociedade tecnológica e ambiente natural.
A medicina e a psiquiatria partirão para enfoques preventivos. Em vez de tratar o organismo humano como o mecânico trata o automóvel, reparando e trocando peças, nos ensinarão uma maneira de vida sã, de integração física e psíquica, uma maneira de vida que deixará nosso organismos imune aos ataques dos agentes patogênicos e que evite o aparecimento das enfermidades degenerativas tão comuns em nossa atual maneira de viver. Além do equilíbrio orgânico procuraremos a harmonia espiritual, libertando-nos de nossas agressões e ambições desmedidas.
O economista, antes perfeitamente alienado da economia da Natureza, saberá encarar a economia humana como o que ela realmente é: um capítulo, apenas, da ecologia. Saberá que todos os recursos pertencem à Ecosfera. Nossos produtos não começam nas fábricas e desaparecem no lixo ou esgoto, tudo vem do ambiente, tudo volta a ele. A economia não pode limitar seu campo de ação àquela fração deste trajeto em que a mão do homem toca nas coisas, deve interessar-se pelas fontes e pelos destinos, não poderá continuar em termos de fluxo aberto, terá que ver e promover fluxos fechados. A integridade da Ecosfera é tão importante quanto a satisfação das necessidades do homem. O homem sem Ecosfera não tem sentido, como não tem sentido a cabeça sem o corpo. Para o economista realmente moderno a Natureza existe. Mas a Natureza não é uma cornucópia sem fundo que fornece gratuitamente recursos ilimitados. O economista de consciência ecológica sabe que somos passageiros de uma nave espacial ilimitada e vulnerável e que precisamos zelar por ela, que não podemos dar-nos ao luxo do esbanjamento de recursos, que não podemos interferir cegamente no grande sistema de suporte de vida desta nave, sabe que estão proibidos todos os erros irreversíveis.
Não mais fará contas simplórias como a conta do PNB. As novas contas serão completas, incluirão a saúde da Ecosfera. O simples fluxo de dinheiro não mais será o arbitrário supremo. Muito mais importantes que os custos monetários serão os custos ambientais. Se não podemos dilapidar impunemente nosso capital monetário, muito menos temos o direito de arrasar a Ecosfera. Nossos capitais monetários são o resultado do trabalho de anos ou décadas; o capital esférico é resultado de três e meio bilhões de anos de evolução orgânica, precedidos de mais de um bilhão de anos de evolução anorgânica. O desrespeito do atual homem econômico ou tecnológico diante desta incomensurável preciosidade só tem uma explicação: a arrogância da ignorância.
O novo economista é um homem muito mais humilde e respeitoso, substitui arrogância por reverência. Ele tem outro conceito de progresso. Seus índices de progresso serão mais complexos, não terão a primitividade do PNB, serão índices qualitativos e não imediatistas, baseados em balanços completos que não mais desprezam a descapitalização da Ecosfera. Progresso será então sinônimo de harmonia ecosférica, o que inclui a felicidade do homem.
Os políticos e os estadistas de todos os países do mundo considerarão tarefa prioritária a manutenção do ambiente apto não só para a vida imediata do homem, saberão zelar pelo patrimônio que vem de milênios, que usufruímos hoje como lugar-tenentes temporários, e que continuará pertencendo aos milênios que se seguirão. Os juristas auxiliarão na elaboração e aplicação da nova legislação necessária, e os militares estarão conscientes de que a defesa nacional começa na defesa do ambiente.
A nossa fabulosa tecnologia de comunicação de massas deixará de prostituir-se para um publicidade nefasta que procura nos inculcar comportamento suicida. Se transformará em instrumento de educação de massas. Contribuirá para a elevação, não para o rebaixamento do nível do denominador comum cultural.
Comportamento de consumo
Evitaremos todo consumo excessivo. A virtude e a felicidade estão também na ausência de necessidades, nunca no consumo desenfreado. Desconfiaremos de toda a publicidade, especialmente da publicidade que serve de truques psicológicos, que apela para considerações de “status”, de prestígio, de vaidade pessoal. Somente é válida a publicidade realmente informativa e que se refere a coisas realmente úteis. Na alimentação preferiremos sempre os alimentos naturais, rejeitando os alimentos excessivamente manipulados ou quimicamente condicionados. Exigiremos comida sem resíduos de pesticidas e aditivos.
A vestimenta será simples e duradoura. Não acompanharemos os exageros da moda. Os cosméticos são como as drogas, quanto mais os usamos, mais necessitamos deles.
Somente compraremos objetos, instrumentos, aparelhos e veículos duráveis e de forma, aspecto e função racional. Recusaremos e combateremos decididamente o obsoletismo planejado, e contribuiremos sempre para a reciclagem de todos os materiais usados.
Insistiremos sempre em embalagens e acondicionamentos mínimos, reaproveitáveis ou biodegradáveis. Recusaremos toda embalagem de não retorno. Todo lixo será reciclado integralmente, e nunca permitiremos que enfeie a paisagem. O aterro “sanitário” de sanitário não tem nada, representa uma dupla obscenidade. É um perigo de poluição para as águas freáticas e um desperdício de preciosos materiais não renováveis. Quem tem jardim ou propriedade rural, portanto, saberá compostas toda matéria orgânica para devolver ao solo a fertilidade perdida.
Preferiremos sempre os materiais reciclados e tiraremos o máximo de uso de cada objeto. Documento já não será o objeto novinho em folha, com cheiro de fábrica, mas o objeto marcado pela pátina do tempo e impregnado da personalidade de seu dono.
Usaremos, sempre que possível, os transportes coletivos. A velocidade só é documento num modo uniformizado e monotonizado, com passageiros insensibilizados e aborrecidos.
Recreação
A pessoa ecologicamente conscientizada preferirá sempre as formas de recreação sadias, construtivas e educativas, nunca as agressivas e destrutivas. Procurará o contato intensivo com a Natureza, saberá gozar a paisagem intacta sem profaná-la. Sua apreciação estética e intelectual diante das maravilhas da Natureza será tal que nunca será capaz de emporcar seu acampamento, sempre o deixará mais limpo que o encontrou; limpará inclusive, a sujeira dos outros.
Desdenhará todas as formas de esporte que promovam atitudes agressivas, como as corridas de automóveis, barcos a motor potentes, tiro ao alvo e caça, preferirá o equitação, as longas caminhadas, a natação, o esqui, o tobogã ou o barco a vela e a rema. Entre avioneta e planador, preferirá o planador silencioso, sensível a qualquer capricho da atmosfera. Os esportes que intensificam a sensibilidade diante dos fatores ambientais deslocarão os esportes brutais. O binóculo e a câmara fotográfica telescópica educam, a arma mortífera do caçador embrutece. Debaixo d’água a câmara submarina substituirá o fuzil. Um dos mais fascinantes e sadios dos esportes deixará, assim, de chamar-se “caça” submarina,
Estimularemos todas as atividades que contribuem ao aprimoramento do homem: a educação física em todas as formas, a música, a pintura e a escultura, a literatura e a poesia, o conhecimento de idiomas, os “hobbies” e os trabalhos domésticos. Cada um de nós, dentro de suas inclinações e talentos, contribuirá à variedade humana, tão necessária e bela como a variedade ecológica.
Dedicaremos muito tempo a nossos filhos, saberemos fazê-los sentir o esplendor do mundo natural. Não mais teremos, então, a triste consciência de entregar-lhes um mundo em ruínas. Os jovens já se criação com a consciência de que o único consumo importante é o consumo intelectual e cultura. Para eles o alvo será a excelência humana, não a movimentação de materiais.
Saberemos, por isso, planejar o número de nossos descendentes, tendo em vista a riqueza e a variedade da Ecosfera, porque queremos para eles um mundo em que qualidade predomine sobre quantidade.
O mundo da sociedade equilibrada, único sustentável, não será um mundo estagnado, será um mundo fabulosamente dinâmico, tão dinâmico como são os ecossistemas naturais, como é a Ecosfera. Será um mundo de vida radiante, porque não mais dilapidada pela agressão imediata, um mundo em que vale a pena viver, um mundo que com orgulho entregaremos aos que nele nos sucederão”.
*Este texto foi escrito por José Lutzenberger para o curso “Equilíbrio e Crise do Meio Ambiente” e publicado na Revista do Ensino, Porto Alegre, Outubro de 1973. Reproduzido a partir de documento do APJL.
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