A paisagem dos arredores da Cidade de Porto Alegre era de rara e singular beleza. A combinação geobotânica é única no mundo, única também no Rio Grande do Sul.
José Lutzenberger (1972)
Correio do Povo, 24/12/1972. Fonte: Reprodução do APJL.
Desde os pantanais do vale do rio Gravataí até a ponta de Itapuã, e das margens do Guaíba até a planície costeira, estende-se uma cadeia de cerros graníticos entremeados de lindos vales e planícies. Estes cerros fazem parte de uma formação maior que alcança até Pelotas, no Sul e até Caçapava no Oeste.
Estes cerros são de pouca altura, os mais elevados mal atingem 300 m, mas eles representam os últimos restos de uma majestosa cadeia de montanhas que aqui se levantou numa era geológica remota, no Cambriano, há uns 600 milhões de anos atrás. De lá para cá a lenta, porém persistente erosão geológica abaixou esta cadeia, deixando-a com sua fisionomia atual, de cerros levemente ondulados, com poucas encostas íngremes – “uma paisagem amenamente bela” – como dizia o saudoso padre Balduíno Rambo S.J., um dos maiores conhecedores do Rio Grande do Sul, um dos poucos que soube apreciar suas paisagens e amá-las profundamente, porque as compreendia em toda sua plenitude ecológica.
Durante o lento e paciente processo de moldagem geológica, durante incontáveis milhões de anos, as rochas foram adquirindo formas as mais variadas, porém sempre harmônicas. O granito nunca deixa cristas e ângulos, prefere sempre formas redondas e suavemente arqueadas. Apareceram assim os numerosos chapadões que ainda hoje caracterizam a maiorias destes morros. O aspecto mais espetacular, porém, que nos brindou a longa história desta paisagem, uma das mais velhas do globo, foram os numerosos monólitos, ou matacões, com suas formas mais bizarras, mas sempre suaves e lisas. Estes matacões muitas vezes assentavam sobre os topos do cerros como imensos ovos semi-enterrados ou apoiados sobre ovos menores, às vezes em grupos maiores ou menores. Em alguns casos estes matacões avançavam sobre a planície. Ainda existe um belo exemplar deste tipo numa pracinha da praia da Alegria. As praias do Guaíba, do lado de Porto Alegre, desde a Cidade até Itapuã, abrigavam grande número destes matacões, todos de grande beleza. Um dos últimos sobreviventes é a pedra de Pedra Redonda. A reunião mais esplendorosa de matacões era a da Ponta da Serraria.
Os morros têm solos pouco profundos em alternância com os chapadões que são as partes em que aflora a entranha rochosa. Talvez devido a esta pouca profundidade, talvez por razões ecológicas ainda não bem compreendidas, porque ainda não estudadas, o traje florístico dos morros é muito variado e muito fascinante. Nos topos e na maior parte das encostam predominam em geral a vegetação de prados em campos abertos. Estes campos, às vezes podem tornar-se progressivamente mais “grossos” como fiz o gaúcho, espessando-se em transição lenta e suave até chegar ao mato alto. Mas esta é a exceção. O caso normal é o limite abrupto entre o campo e o mato. A fisionomia florística dos morros caracteriza-se, assim, pela alternância de manchas de campo e de mato que se disputam mutuamente o terreno. Algumas vezes o mato consegue cobrir toda uma encosta ou todo um morro, outras vezes não passa de pequenos capões isolados ou de linhas de capões ao longo dos cursos de água, linhas estas que sobrem a encosta ao longo do córrego para morrer na vertente. Muito comuns são também mini-capões isolados, associados com afloramentos de rocha, onde a vegetação arbustiva ou arbórea serve de moldura a matacões ou grupos de matacões. Algumas vezes a rocha, em campo aberto, está associada apenas a uma solitária capororoca acompanhada de um velho cactos em forma de candelabro. Também podem aparecer figueiras isoladas sombreando elegantes arranjos de pedras.
Temos assim dois grandes ecossistemas justapostos e entremeados, abrigando cada um toda uma série de comunidades florísticas menores, podendo aparecer, inclusive, pequenos lagos em topos de morros, como no caso do Morro Teresópolis que era um dos mais belos da região.
O bosque era outrora frondoso e riquíssimo em espécies. Havia muitas valiosas essências florestais com exemplares centenários. Abundava a guabiroba, o cedro, a canela, o angico, a guajuvira e muitas outras madeiras finas. Nas margens do mato predominavam certas mirtáceas como a pitanga, e o camboinzinho. Nestas margens apareciam também certos maricás com flores muito belas, às vezes vermelhas, outras vezes brancas. Em certos vales havia capõezinhos em pleno banhado onde nas margens predominavam belos filodendrons.
Estes bosques, quando ainda intactos, quando ainda exibiam a pátina dos séculos, eram verdadeiras pastagens do país de história de fadas. Incrível era a riqueza de epífitas, de plantas que, sem serem parasitas, crescem acavaladas sobre as árvores.
Toda figueira velha tinha sua saia cinzento-azulada de barba-de-pau, uma pequena bromeliácea, capaz de viver exclusivamente do ar e da chuva. Sobre os velhos galhos e troncos, então, havia verdadeiros jardins de orquídeas, bromélias, samambaias e Rhipsalis, um cactos filamentoso que pende em forma de cabeleira verde. Era muito comum também ver-se um cactus columnar, o mesmo cereus dos grupos de rochas do campo, montado no alto de uma figueira gigante onde sua semente tinha sido plantada por algum pássaro. Muito comum era a hoje extinta baunilha que trepava pelos troncos das árvores. Havia também uma profusão de lianas entre as quais se destacavam várias formas de maracujá e de aristolochia. Como contrapartida para o vestido epífita das árvores o solo e especialmente as rochas tinham uma coberta igualmente bela de plantas de sombra, entre elas uma grande riqueza de samambaias, musgos, licopódiums, hepáticas, líquens e algas. Um espetáculo encantador e único. Este tipo de bosque não ocorre em mais nenhuma outra parte do mundo. Trata-se de uma comunidade florística exclusivamente desta região. Quando tivermos eliminado o último deste tipo de mato ele terá desaparecido para sempre da face do globo.
Parque Estadual de Itapuã-RS. Fonte: https://www.sema.rs.gov.br/parque-estadual-de-itapua
Igualmente belas e esquisitas eram as formações que se instalavam sobre as rochas. Antes das primeiras depredações, os matacões apresentavam-se sempre cobertos de plantas epífitas com várias espécies de bromélias de espetaculares inflorescências, algumas samambaia adaptadas à vida no sol e em condições extremas, musgos, peperômias.
Rhipsalis. Estes agrupamentos conseguiam às vezes produzir sobre a rocha um início de solo que permitia então a instalação de outras espécies no topo do matacão. Cresciam então enormes cereus ou nascia uma figueira que, quando vela abraçava com suas raízes toda a pedra. Conforme a exposição uma pedra podia também estar coberta de vegetação de sombra. Eram muito comuns os matacões cobertos de verdadeiros gramados de Cattleyas. Na época da floração da orquídea, o monólito se cobria de um véu cor-de-rosa. Um espetáculo realmente excepcional no mundo.
Ao lado dos chapadões e entre as pedras soltas dos descampados, por sua vez, existia toda uma flora semixerófita. Na parte mais arbustiva uma planta que se destacava e que ainda hoje, quando não mutilada, caracteriza a formação é a opuntia ou tuna com seu seus longos e agudos espinhos em forma de agulhas e seu fruto vermelho. Ali onde o solo termina e aponta a rocha nua costumava aparecer o estranho cactus redondo, o Notocactus, com sua magnífica flor amarela de pistilo púrpura. Ao lado dele pode aparecer a minúscula frailea que às vezes varia bastante de morro. No morro, da Polícia, antes de sua exterminação pelos trabalhos de terraplenagem da Embratel, ela vivia quase escondida no solo, como uma pequena cenoura verde sem folhas. No verão produzia várias flores enormes para ela, porém muito delicadas, uma verdadeira joia da natureza. Já em outros morros, no Teresópolis, por exemplo, a frailea é bem diferente, tem forma de charuto peludinho, mas com flor igualmente esquisita. Cada morro tinha sua forma de Dyckia, uma pequena bromélia terrestre, suculenta, de flores amarelas e folhas rijas em roseta com matizes os mais delicadas, desde várias tonalidade de verde cinzento prateado ou quase branco. Cada uma dessas espécies era endêmica, de seu morro, evoluiu com ele. Como esta planta não tem capacidade de viajar, a semente não é carregada nem pelo vento nem por animal algum, e podendo viver apenas nas margens dos chapadões, cada espécie está separada das irmãs do morro vizinho o tempo que levou a erosão geológica para abrir o vale entre elas. Em alguns casos, isto deve ter levado algumas dezenas de milhões de anos. A Dyckia da parte do topo do Morro da Polícia era uma das mais preciosas. Não existe mais. Ali naquele topo existia outra planta endêmica, a Colletia crucciata, um arbustinho de puro espinho em formas bizarras de cor verde-azulado. Também desapareceu, vítima da terraplanagem. Esta bela planta ocorria naqueles poucos metros quadrados e em mais nenhuma parte da região.
Quando um chapadão, apenas coberto de uma fina camada de solo, estanca a água aparecem comunidades especialmente adaptadas a estas condições. Nestes lugares podem encontrar-se, às vezes, minúsculas orquídeas de solo ou as delicadas florzinhas da Utricullária, uma planta carnívora que se alimenta captando animaizinhos unicelulares no solo com cápsulas especiais nas raízes. Ali também pode aparecer uma verdadeira joia do mundo vegetal, a pequena e delicada Drosera, outra planta carnívora, que com suas folhas cobertas de tentáculos, cada um com uma gotícula de mel pegajoso na ponta, capta insetos pequenos, especialmente mosquinhas e formigas.
A flora destes cerros é realmente excepcional e sua descrição completa encheria livros. Em parte esta flora ainda não está estudada. A ecologia da zona é quase desconhecida. Esta paisagem é de grande valor sob todos os aspectos, uma paisagem de beleza e encantos excepcionais, desconhecidos em outras partes do mundo. Os naturalistas estrangeiros que aqui estiveram sempre saíram impressionados.
Ultimamente, entretanto, alguns, ao reverem esta paisagem depois de longa ausência, partiram tremendamente decepcionados, chocados, incapazes de compreender como pode um povo de tal maneiras desrespeitas seus mais preciosos patrimônios a ponto de cega e inescrupulosamente depredar, degradas e obliterar o que tem de mais característico e belo.
Infelizmente nosso povo sempre foi de uma cegueira total diante dos espetáculos da Natureza, por mais belos e fascinantes que fossem, raríssimas vezes soube ver além do negócio e lucro imediato. Esta paisagem está hoje seriamente depredada, sobram muito poucos rincões que ainda dão uma ideia do que era sua beleza original. Assim, de longa data vem o incrível costume de desmantelar os mais belos matacões. Arranca-se impiedosamente sua cabeleira epílita e o martelo e o formão passam então, tranquilamente, a talhar moirões meios fios e paralelepípedos. Para compreender a magnitude do sacrilégio que isto significa, basta imaginar-se o tempo que necessitaram a lenta erosão geológica, o ácido dos líquens e das raízes das espílitas, para moldar estas magnificas pedras: apenas algumas dezenas de milhões de anos. Se destruir um monumento arquitetônico de algumas centenas de anos é crime imperdoável, que dizer deste tipo de depredação?
Não só os matacões já quase desapareceram e continuam desaparecendo, as belas figueiras centenárias estão quase todas condenadas. Tanto o caboclo como o excursionista insistem em fazer seu foguinho ao pé da árvore, entre as aletas das grandes raízes. Tanto população local como turistas e engenheiros estão hoje fazendo o possível como acabar rapidamente com tudo que ainda é belo nesta região. Quando não é a agricultura de rapina do caboclo que derruba o último mato, é o fogo do excursionista ou do maloqueiro que dizima a esquisita flora. Quando não é a pedra solitária que desaparece sob o assalto do martelo e formão, é toda a encosta do morro que sucumbe na pedreira monstro. Onde não é a dinamite, é o buldozer que arrasa o que ainda sobra. Aparecem assim enormes e gritantes feridas vermelhas que hoje enfeiam a paisagem e que são visíveis de longe para quem se aproxima de avião, por terra ou de barco. O último mato que o roceiro ainda não conseguiu liquidar, é severamente mutilado pela CEEE que acha que debaixo de uma linha de alta tensão deve haver sempre uma faixa de 100 m de largura de deserto ou é a Embratel que aplaina os mais belos topos para ali colocar suas torres, como se não fosse possível instalá-las respeitando as obras da Natureza. O que ainda consegue sobreviver, desaparece então com os loteamentos indisciplinados ou com o avanço ainda mais caótico das malocas.
Todas as explorações estão feitas de maneira absolutamente caótica, sem a mínima preocupação paisagística ou ecológica, com cegueira e irreverência total, absoluta. As nossas autoridades nunca tiveram a mínima sensibilidade para estes aspectos, nunca viram nada, antes encorajaram as depredações. A degradação avança, a passo acelerado, em espiral exponencial. Se as atuais tendências continuarem por mais alguns anos o que era uma das paisagens mais amenas e preciosas do mundo passará a ser apenas um amontoada de feiura, desolação e destroços. A marcha exponencial desta destruição fará com que em bem poucos anos, mesmo que queiramos, já não haverá mais possibilidade de salvar nada de valioso.
É portanto absolutamente indispensável que disciplinemos em tempo, isto é já, a exploração, o desenvolvimento e a urbanização da região. Deve ser feito um zoneamento que delimite definitivamente e claramente o que pode ser urbanizado, quais os elementos paisagísticos que devem ser conservados ou recuperados, quando possível, onde pode e onde não pode ser feita exploração agrícola. É imprescindível que se faça um levantamento ecológico da região com mapeamento dos diferentes ecossistemas e comunidades florísticas. A parte não liberada para agricultura e urbanismo deve ser rigorosamente protegida, podendo, então, reintroduzir-se inclusive a fauna já praticamente extinta.
Costumamos ser muito precipitados em copiar o “progresso” material dos países que admiramos, mas esquecemos completamente de copiar também outros aspectos igualmente importantes e vitais, como é o respeito paisagístico e a conservação da Natureza. Se podemos ter congressos de cibernética está na hora também de copiarmos o guarda florestas, o cuidado da flora e fauna como são praticados na Europa e nos Estados Unidos.
*Artigo publicado no jornal Correio do Povo, 24 de dezembro de 1972., reprodução do APJL.
Texto transcrito por Sara Rocha Fritz.
Postado por Débora Nunes de Sá.
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