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A visão global do assunto saneamento nas cidades*

Nós não somos contra a tecnologia, nós somos a favor de tecnologias inteligentes, realmente inteligentes e sofisticadas, mas sofisticadas biologicamente e socialmente sofisticadas. Não sofisticadas apenas na brutalidade da máquina.


José Lutzenberger (1984)



Eu agradeço inicialmente o convite que me trouxe aqui, porque realmente eu acho que esta discussão é extremamente importante. E eu queria iniciar, contestando primeira a última coisa que foi dita pelo Sr. Zulauf, ou seja, de que se este Projeto que está aí não for executado, a alternativa seria as coisas ficarem como estão. Isso não é verdade, em absoluto. Nós temos alternativas excelentes, muito boas, humanas, de tecnologia suave e que podem ser feitas com recursos locais, não precisamos nem do dinheiro do Banco Mundial. E é disso que eu quero falar.


Como me deram como título para a minha palestra “A visão global do assunto saneamento nas cidades”, eu gostaria de iniciar tocando primeiro alguns aspectos mais ideológicos, mais filosóficos da engenharia sanitária moderna ou da tecnologia moderna em geral, que na realidade é muito ideológica mas essa ideologia está escondida e não é discutida abertamente.


O saneamento moderno tal como ele é em geral oferecido às entidades públicas pelos tecnocratas que querem vender equipamentos caros, ele parte de toda uma filosofia que tem uma série de postulados que estão fundamentalmente abaixo. Isso acontece na agronomia, isso acontece no saneamento, acontece em todas as formas de tecnologia moderna.


Não é a tecnologias que nós somos contra, mas nós somos contra determinados enfoques que levam a tecnologias desumanas, concentradoras, feudais, sim no verdadeiro sentido da palavra porque elas concentram o poder e é isso que se quer, que são marginalizadoras e tremendamente devastadoras do ambiente.

O postulado básico que se vê na engenharia sanitária de hoje, e que em geral não é jamais explicitado da maneira como eu vou explicitá-lo agora, mas que está na base de quase todos os trabalhos que hoje se faz, é de que em primeiro lugar se quer fazer desaparecer coisas consideradas fundamentalmente ruins. Mas não existe coisa ruim neste país. Um copo de vinho aqui em cima da minha mesa é uma coisa boa. Agora, se eu jogar este copo de vinho neste tapete, então é porcaria, o vinho não mudou de característica, mas o lugar está errado. Então se quer fazer desaparecer coisas. Por exemplo, recentemente eu estive em Fortaleza, ali eu vejo inclusive na praia, num dos lugares mais bonitos da praia um monumento a um emissário que leva o esgoto para dentro do mar, porque se quer é desfazer de uma coisa considerada ruim. Este postulado nós já temos que abandonar.


O segundo postulado é o do centralismo. Se quer soluções grandes, o mais centrais possíveis. Por exemplo, uma cidade do tamanho, da extensão e da diversidade de Recife, se quer uma solução só. Aliás em São Paulo – o sr. Darci Peres sabe muito bem – se propôs para o esgoto aquele absurdo Projeto Sanegran, que levaria todo o esgoto de São Paulo para um lugar só e ia custar, se não me engano, 8 bilhões de dólares, mais uma fonte de endividamento do nosso país e do próximo colapso dos bancos mundiais – o que talvez não seja tão ruim então, porque não vamos mais poder fazer essas loucuras. Mas a ideia é centralizar a solução da maneira mais central possível. O aterro de Timbó está bem dentro dessa filosofia: se quer uma solução única para uma gigantesca metrópole que chega a ter 30 ou 40 quilômetros, se não me engano, de extensão, e que tem pequenas micro paisagens as mais diversas e que ofereceria muitas soluções locais interessantes. Mas se quer uma solução central. As soluções centrais levam automaticamente a megatecnologia, ou seja, a gigantescas obras, mirabolantes. Isso é exatamente o que o tecnocrata precisa, porque isso significa gigantesca movimentação de dinheiro. Esse aterro aqui ouvi dizer que custa 36 bilhões de cruzeiros, ou seja, aproximadamente vinte milhões de dólares. Até dentro deste contexto é uma coisa não das maiores: Itaipu, Tucuruí, essas outras loucuras são muito piores.


Mas se quer centralismo e o centralismo significa duas coisas: primeira significa uma mistura indecente de coisas. Se eu misturo vinho com café, com cerveja, com feijão preto, com sopa, com ácido, com gasolina, é claro que eu vou ter uma coisa indescritível que químico nenhum do mundo terá condições de separar. Agora cada uma dessas coisas separadas na fonte é boa, em vez de ser uma porcaria poderia ser mercadoria. Mas essa megatecnologia, esse centralismo leva naturalmente a uma mistura indescritível: naquele aterro haverá sofás misturados com cascas de banana, com latas de inseticida, enfim, com tudo que se possa imaginar de resíduos que uma grande cidade produz sem nenhuma preocupação em separar as coisas.


Mas a megatecnologia é sempre interessante para os tecnocratas, para os burocratas que com eles trabalham porque significa gigantescos contratos de construção – eu gostaria de ser dono de uma dessas empreiteiras – contratos de fornecimento de materiais, assim por diante. As soluções são extremamente caras, portanto, para a sociedade, haja vista que nós temos que pegar dinheiro no exterior para resolver o problema do nosso lixo – que coisa absurda! Será que nós não temos condições de nós cuidarmos do nosso lixo? Precisamos de dinheiro do Banco Mundial, aumentar a nossa dívida que já é de 100 bilhões de dólares que nós não vamos pagar e que os outros países também não vão pagar.


E o aspecto mais preocupante desse tipo de filosofia é que os resultados são sempre biológica ou ecológica e socialmente indesejados. Levar esgoto para dentro do mar ou fazer estações de tratamento como a Sanegran, que leva aqui, mistura ali, esgoto do México com industrial e tudo, depois dá um lodo que está completamente contaminado com metais pesados, que eu só posso levar para um outro aterro dito sanitário, mas que no fundo outra coisa não é senão uma bomba relógio para as gerações futuras. As soluções megatecnológicas são sempre ecologicamente e socialmente profundamente indesejadas. Elas devastam o ambiente, contaminam o ambiente e, quanto a emprego, dão o número mínimo de empregos. Mas movimentam muito dinheiro e propiciam também muita corrupção.


Nós temos que inverter esse enfoque. Temos que fazer exatamente o contrário, temos que começar pelo outro extremo. Se nós queremos soluções que sejam ecologicamente boas, racionais, e socialmente aceitáveis, ou pelo menos neutras, que não pisem em ninguém, mas de preferência devem ser soluções que fazer bem à comunidade, que dão mais emprego, que integram o homem em seu ambiente. Então nós temos que partir não para o centralismo, mas para a descentralização. E a descentralização deve ir até onde pode, até dentro da fábrica, se for possível. Por exemplo, um curtume. Um curtume tem hoje um dos efluentes mais asquerosos, mais nauseabundos que se pode imaginar se ele não fizer nada, porque ali nós temos uma alta concentração de matéria orgânica, quase pura proteína, misturada com sulfetos, com ácidos, com carcalho e com um metal pesado: o cromo. Enquanto toda esta coisa está misturada, o único que poderíamos fazer são estações bastante caras, decantar esse material, levar esse resíduo para um aterro que então recebe o eufemismo de sanitário, e que de sanitário não tem nada.


Entretanto, se nós captarmos dentro da indústria cada um dos efluentes na sua fonte, nós só temos coisas boas. O cromo reciclado dá um lucro muito grande adicional para o curtume. O calero é reciclado; o lodo vai para a agricultura, dá milho de quatro metros de altura. Os agricultores brigam por esse lodo no momento em que eles se dão conta do seu valor.

Nós precisamos, portanto, inverter completamente essa filosofia. Em primeiro lugar não existe coisa ruim, a não ser os resíduos radioativos das usinas nucleares, mas eles seriam bons lá no sol, portanto nós nem devíamos fazer usinas nucleares aqui.


Mas não existe coisa fundamentalmente ruim: só existe coisa boa incomodando quando está no lugar errado, como o vinho incomodaria se estivesse no tapete em vez de estar no copo. E não devemos fazer misturas que depois se transformam numa grande porcaria, onde realmente não há mais químico no mundo que possa separar.


Nós precisamos partir para um enfoque completamente diferente. Em primeiro lugar nós temos que nos dizer em cada caso para que serve essa coisa, como eu posso utilizá-la, como eu posso transformar essa coisa que está fadada a ser porcaria, em mercadoria. E vamos ver que praticamente não há problema que não tenha solução simples, barata e localmente acessível, e que se possa resolver com os recursos locais. Isso naturalmente requer também decisões políticas, por exemplo, neste país nós temos que brigar contra essa absurda centralização que hoje existe, que bota 90% dos recursos de taxação na mão da máfia central em Brasília, deixa as prefeituras todas na míngua, então claro que... Aliás, eu acho até que nós devíamos abolir aquela máfia, fazer um acordo, não dar mais bola para ela, fazer uma confederação de Estados, onde o poder residisse na periferia, não lá.


Essas decisões é claro que nós temos que tomar. Mas esse tipo de tecnologia, à medida que nós aceitamos, ele cimenta cada vez mais esse tipo de situação política também. Quanto mais obras mega tecnológicas nós fizermos, que trabalhem com dinheiro federal e – pior ainda – com o dinheiro internacional, mais nós estaremos acimentando e fixando essas estruturas políticas centralistas, que nos deixam cada vez menos autônomos e cada vez mais dependentes.


Quanto ao lixo, voltando agora ao lixo, uma das razões porque praticamente nada se faz neste país como em outros, porque continuam os aterros selvagens, ou os aterros ditos sanitários, e uma das razões porque, como foi dito há pouco, a maioria dos prefeitos não quer nem ouvir falar desse assunto, é porque as soluções que em geral são apresentadas aos prefeitos são as soluções mega tecnológicas, que são tão caras e as nossas prefeituras são tão pobres que não dá nem para pensa no assunto.


Entre as soluções que são oferecidas no lixo, as mais tradicionais eram a incineração e as usinas de compostagem e, mais recentemente, o aterro dito sanitário. Agora inventaram essa coisa de energético também: outro eufemismo interessante e nós vamos falar disso depois.


A incineração está sendo feita muito na Europa. Hoje na Alemanha existem muitas usinas de incineração de lixo. São grandes fornos onde o lixo é queimado, se procura leva-lo a temperaturas, quando possível, acima de 800 graus ou mil graus. É uma solução mega tecnológica, porque essas usinas são extremamente caras, elas custam na ordem de 20 mil dólares por tonelada/dia de lixo – qual é a prefeitura brasileira que tem dinheiro para isso? Além disso ela tem custos de operação altos que vai também a algo assim como 10 dólares por tonelada. Portanto essas usinas não dão lucro nenhum à prefeitura.


(Fita2 – lado2)

... primeiro efluente aéreo. Agora estão começando a fechar usinas de incineramento na Alemanha. Eu tenho aqui na minha pasta o penúltimo número da revista Der Spiegel. Houve recentemente na Alemanha um temendo escândalo, o escândalo da dioxina. Vocês todos devem estar lembrados daquele escândalo dos barris perdidos de dioxina, mas isso não é nada comparado com o que está acontecendo agora. Eles estão descobrindo que o país todo está sendo envenenado com dioxina. Uma das grandes fontes de dioxina são as incineradores de lixo. Organoclorados cíclicos, do tipo lindano, pentaclorofenol e todas essas coisas, quando queimados em fornos ou simplesmente queimados ao ar livre produzem uma certa proporção de dioxina. Dioxina é o veneno mais grave que existe. Enquanto que os mais fulminantes dos pesticidas atuais atuam em concentrações de partes por milhão, a dioxina atua em partes por bilhão.


Recentemente, também a revista [espaço em branco], na Alemanha, também publicou uma série de artigos onde aparecem fotos de crianças horrivelmente deformadas que nasceram assim no Vietnã e estão nascendo agora na Alemanha – no Vietnã por causa da aplicação do Agente Laranja nas florestas pelos americanos, aqui estamos fazendo coisa semelhante em Tucuruí, e pela dioxina que está sendo liberada pelas indústrias químicas. No caso específico, em Hamburgo inclusive foi fechada uma firma, a firma [espaço em branco], por causa disso.


As usinas de incineração, portanto, do lado do efluente aéreo, são um perigo muito, muito grave. Mas as cinzas também são. A cinza que sobra não pode ser usada para a agricultura. Normalmente uma cinza seria um excelente adubo mineral. Quando que queimo lenha, o que sobra é tudo aquilo que a planta retirou do solo, o que vai para a atmosfera é tudo aquilo que ela retirou do ar e da água: matéria orgânica, carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, enxofre e depois os macro e micro elementos: o fósforo, o cálcio, o potássio, o manganês, o magnésio, assim por diante, até os últimos micro elementos. Quando se queima madeira ou folhagem ou qualquer material orgânico, o carbono, o hidrogênio, o oxigênio, o nitrogênio vão para a atmosfera; o que sobra na cinza é exatamente aquilo que a planta retirou do solo. Portanto não há adubo mineral melhor do que a cinza. Infelizmente aqui neste país estamos botando fora centenas de milhares de toneladas de cinza anualmente sem aproveitá-la. E gastamos, por outro lado, bilhões de dólares na importação de adubos minerais sintéticos. Mas na usina de incineração de lixo, aquela cinza é uma zinca extremamente perigosa. Porque no lixo se encontram coisas como sapatos, por exemplo, que são de couro. O couro em si seria uma coisa muito boa, se nós fizéssemos hoje ainda couro italiano como se fazia antigamente. Mas hoje, quase todo couro é couro cromo, um pedaço de couro contém hoje de 3 a 5% de cromo, cromo três, que já é um perigo. Mas quando esse couro for queimado, se forma couro cromo seis, que é um metal pesado altamente pernicioso, que causou no Japão aquela terrível doença chamada hitai-hitai – ela se chama hitai-hitai porque justamente ela é tão dolorosa, que as pessoas passam o dia gritando de dor, e o japonês quando está sofrendo diz “hitai”, onde nós dizemos “aí”, daí o nome dessa doença;


As usinas de incineração, portanto, são uma solução que inclusive já está sendo abandonada. Além de cara, antieconômica, ela é tremendamente perigosa, e não resolve nada.


Depois foram propostas as usinas de compostagem, que têm aí dois tipos, o dano e o mecare, um aeróbio, o outro anaeróbio. Essas usinas de compostagem que muitas vezes são propostas como uma solução mais ecológica, mas elas são também soluções tecnocráticas, mega tecnológicas. Elas custam também na ordem de 20 a 30 mil dólares por tonelada/dia só no investimento; o custo de operação também está por volta de uns 10 dólares por tonelada, portanto, elas não dão lucro nenhum, e o produto que elas produzem em geral é de difícil colocação, porque ela não é uma verdadeira usina de compostagem, ela é uma usina de homogeneização, ela homogeneíza o material. Aquela casca de laranja que entrou inteira na ponta de entrada, sai no outro extrema granulada em pedacinhos, mas que ainda tem a cor original. Aquele composto precisa ser recompostado, ele precisa amadurecer pelo menos 60, 90 dias para poder ser usado na agricultura. Assim como ele está o agricultor não quer recebe-lo. Portanto, a usina de compostagem também não é solução.


As usinas becarium – em Recife há uma usina becarium muito bonitinha, muito limpa, muito organizada, mas ali se pode ver à primeira vista que para as quantidades de lixo que nós temos hoje, aquilo não é mais solução. É uma solução interessante para quando existem pequenas quantidades de lixo e para lixos que não contenham grande concentração de plásticos e outras coisas é uma solução muito boa. E eu acho inclusive que essa usina becarium que existe aqui em Recife deve ser mantida e deve ser usada para fins experimentais, para fazer alguns compostos especiais, com lixos especiais, por exemplo, o lixo da Ceasa e coisa semelhante. Mas não é uma solução para as grandes quantidades de lixo que vêm hoje das partes centrais das grandes metrópoles. E ela é também muito cara. Precisamos ali de um investimento que deve ser também dessa ordem de 10 ou mais mil dólares por tonelada/dia.


A terceira solução que então aparece é a do aterro dito sanitário. Em geral, as prefeituras, como eu dizia, fazem aterros selvagens, simplesmente atiram em qualquer lugar. Eu conheço algumas prefeituras, lá no Rio Grande do Sul que estão fazendo coisas simplesmente indescritíveis. Por exemplo, a Prefeitura de Caxias do Sul atira o lixo, que lá são quase 100 toneladas/dia, um pouco mais de 100 toneladas/dia, atira esse lixo num precipício, um lugar que, se houvesse o mínimo de sensibilidade estética entre nossos administradores públicos, teria sido escolhido como um lugar de recreação, um cânion profundo de uma beleza incrível onde se poderia fazer coisas muito, muito lindas, está a 6 km do centro da cidade. Infelizmente uma coisa que falta muito entre nós é capacidade de percepção de harmonias, as pessoas nãos abem ver beleza. Não sei que tipo de homem foi esse que resolveu escolher aquele lugar de uma beleza excepcional para simplesmente jogar o lixo lá dentro. E jogam o lixo em cima de um arroio que ali passa. O arroio, portanto, filtra o lixo, como aquele lixão está eternamente incendiado, os metais pesados, o cromo, o cadmio e outros estão dentro do rio.


E mais recentemente então se fala em aterro sanitário. O aterro sanitário, como foi explicado aqui, energético ou não, seria um aterro disciplinado com reciclagem de chorumes e tudo, isolado para que não haja problema de contaminação. Mas, o que é que o aterro sanitário resolve? Ele não está resolvendo o problema de recursos. Todos aqueles recursos ficam ali enterrados. Dizer que está se fazendo ali uma jazida de composto para o futuro, mas então por que não usar este composto imediatamente e usá-lo de maneira descentralizada em compostagem aeróbia, dando mais emprego a pessoas locais, necessitadas e menos aos banqueiros lá de Washington?


O aterro dito sanitário na realidade não resolve nada, porque ele não está reaproveitando os materiais. As coisas são atiradas lá dentro, em geral, inclusive, se combate o catador que vem, não se deixa que o pessoal cate, porque se considera que isso é uma indisciplina – em Porto Alegre eles eram afastados a ponta de arma inclusive, não se deixava ninguém catar.


O aterro sanitário, além de ser caro também, mesmo quando feito em termos mais ou menos simples, em terreno plano, mas quando feito como esse aqui é uma coisa absurda o custo, e não resolve o problema. Num mundo de recursos em desaparecimento nós não temos o direito de simplesmente botar fora esses materiais. Nós deveríamos recicla-los na fonte.


Aqui em Recife – eu voltarei a falar desse aterro mais adiante, porque felizmente da outra vez que estive aqui eu tive a chance de vê-lo – mas aqui em Recife eu vejo tremendas possibilidades de alternativas. Não é verdade que não fazer este projeto significa cair atrás e deixar as coisas como estão. Muito ao contrário. Essa é uma alternativa completamente falsa ou mentirosa, não sei. Mas ela é falsa. Não precisamos deixas as coisas como estão. Muito ao contrário: com cem vezes menos dinheiro do que este que foi gasto neste lixão absurdo, com cem vezes menos dinheiro, nós podemos fazer coisas muito bonitas e muito interessantes, muito humanas e muito ecológicas aqui em Recife.


Eu tive também a feliz oportunidade de visitar, da outra vez que estive aqui, e quero que vocês todos visitem esse lugar também, não só o lixão tecnocrata que vocês vão ver, eu quero que vocês visitem também um lixão selvagem que aqui existe, se não me engano ele se chama o aterro dos Prazeres. Lá se vê um espetáculo dantesco, dantesco mesmo. Existe ali um aterro selvagem de lixo, eu acho que tem uns 5 ou 6 ou 10 hectares de lixo atirado dentro de um banhado, em cima desse lixo se vê centenas de milhares de pessoas catando e comendo lixo, o que já é um termômetro da injustiça social que existe neste país, especialmente aqui nessa região. Quando o caminhão do lixo chega, o pessoal avança em cima do caminhão e já começa a catar as coisas lá em cima, ali não se perde uma tampinha de garrafa. A catação é total, com exceção do composto que se perde embaixo, porque ninguém se preocupou jamais em aproveitar aquela coisa de maneira mais racional. Aquilo está servindo justamente de espantalho, para se dizer: tá vendo, essa coisa não pode ficar assim, nós temos que fazer uma coisa diferente. E, de fato, a situação que hoje ali existe é uma situação deprimente, profundamente desumana. Por outro lado, ela nos oferece também uma tremenda de uma oportunidade. Se existem aqui pessoas dispostas a fazer esse tipo de trabalho e, eu me lembro que no dia em que u estive aqui, faz umas 3 ou 4 semanas, essa gente, depois que nós a visitamos lá, parece que se assustaram e ficaram com a impressão que eles iam ser expulsos de lá, eles vieram para o jornal, protestar: por favor não nos tirem o nosso lixo, nós vamos morrer de fome se nos levam o lixo. Eu tenho essa reportagem aqui na minha pasta. Então por que não aproveitar essa gente e humanizar a vida deles com 100 menos vezes dinheiro do que este que está sendo gasto nesse absurdo, nesses imbecil, imbecil – eu gosto de falar emotivamente – com cem vezes menos dinheiro do que este que está sendo gasto nesse aterro, nós poderíamos dar a essa pobre gente trajes descentes, botas, luvas, abrigo – nem abrigos eles têm, há gente dormindo no lixo, dormindo na rua lá, com chuva e tudo, porque eles têm que estar lá para não perder a oportunidade de catar no dia seguinte, porque a concorrência é grande. Então, vamos fazer abrigos, podem ser abrigos simples, cobertos de palha, por que não? Tudo isso pode ser feito com dinheiro local. Eu tenho entendido que um empréstimo do Banco Mundial requer sempre uma contrapartida, uma contrapartida local. Então esse dinheiro local existe. Ora, vamos pegar essa contrapartida e esquecer o Banco Mundial, que aliás terá muito em breve cortadas as suas verbas. Eu pessoalmente estarei em Washington dentro de algumas semanas para depor justamente sobre os absurdos que o Banco Mundial faz não só aqui nesse país como no mundo inteiro. E é verdade que estourou grande controvérsia lá dentro, sim, porque o Banco Mundial, longe de promover progresso, está promovendo marginalização, miséria, devastação no mundo inteiro. No Sahel, na região subsaariana, nesses próximos meses alguns milhões de pessoas vão morrer de fome por causa de projetos que foram promovidos pelo Banco Mundial. Aqui no Brasil ele contribuiu a Tucuruí, a Itaipu, a todas essas loucuras, está promovendo o Provárzeas, está promovendo a marginalização do Proálcool e coisas semelhantes.


Portanto, nem sequer nós poderemos contar mais muito tempo com esse dinheiro, porque os congressistas americanos estão acordando a isso e estão com a intenção de cortar as verbas do Banco Mundial à medida em que nós possamos mostrar aonde esses projetos são perniciosos.

Acontece que o pessoal no Banco Mundial é economista, que não tem visão ecológica. Eu não quero dizer que eles sejam mal intencionados. Mas eles estão dentro de enfoques, de paradigmas que fazem com que eles promovam aquilo que interessa à grande tecnocracia, não aquilo que interessa aos povos e à ecologia.


Voltando ao aterro dos Prazeres, com uma fração do dinheiro, nós poderíamos dar trajes decentes, botas, luvas, condições de higiene, que lá nem um sanitário tem, aquele pessoal caga em cima do lixo, porque nunca ninguém se lembrou de colocar uma simples latrina lá. Não tem um chuveiro. De noite eles vão pra casa ou dormem ali, sujos como estão. Será que uma comunidade como o Recife não pode dar chuveiros e sanitários para essa pobre gente lá? Eles estão fazendo um trabalho muito interessante, um trabalho altamente bom para a sociedade, estão ajudando a recuperar materiais. Em outros países não se conseguem mais fazer isso, porque não há pobreza que faça o pessoal querer reciclar. Aliás, também não é bem assim. Eu estive recentemente num grande lixão na Alemanha. Num lixão na cidade de Colônia. É uma coisa realmente escandalosa que eu vi lá, o que se bota fora é simplesmente indescritível. Primeiro que o administrador do lixão custou a nos deixar entrar, ainda mais que eu estava acompanhado de uma câmara de televisão, mas ele acabou nos mostrando o negócio. Aí já era fim da tarde e quando chegou o fim da tarde, os operários que ali trabalhavam, que, aliás, ganhavam muito bem, em termos de dinheiro brasileiro, mais de um milhão e meio por mês, imaginem. Quando os operários do lixão foram embora, aí começaram a filtrar por todos os lados através das cercas, pessoas que vinham catar lixo. Eram operários estrangeiros, iugoslavos, turcos, espanhóis, portugueses. E eles foram enxotados, porque a Lei não permite.


Portanto, nem na Europa não falta gente disposta a reciclar esses materiais. O problema é mais político do que técnico, gente temos. E aqui no Nordeste, onde eu vejo uma das coisas mais bonitas – por um lado mais tristes, por outro lado mais bonitas no Brasil: aqui existe um povo tão genial, com tanto imaginação, é só ver o artesanato que essa gente faz. Vamos aproveitar essa engenhosidade fantástica desse povo e essa vontade de trabalho que eles têm. É difícil encontrar um povo com mais capacidade que esse aqui, com uma imaginação fantástica. Eu vi a mesma coisa nos outros Estados do Nordeste. Então vamos aproveitar essa gente que hoje está marginalizada, por causa também das mega tecnologias e dos latifúndios, ou seja, por causa da grande concentração, que não lhes dá condições de se desenvolverem, vamos aproveitar essa gente e fazer coisas boas.


Então, como eu estava dizendo, vamos humanizar, como primeiro passo, o aterro dos Prazeres – pelas minhas contas deve estar recebendo mais ou menos a metade do lixo do Recife – dando trajes decentes, dando abrigos a eles, dando latrinas, chuveiros, uma sala para comer. Aquela gente não precisava estar comendo lixo não. Se nós disciplinarmos aquela reciclagem, principalmente diminuindo a exploração que ali existe, o lixão está rodeado de pequenas barraquinhas onde estão os intermediários – não precisamos nem acabar com esses intermediários, eles também têm uma função importante, mas vamos afixar todos os dias o preço dos materiais, para que o intermediário não posso roubar demais daquele povo, ele rouba no preço e rouba no peso. Se essa coisa for disciplinada, essa pobre gente ganhará melhor e não precisará mais comer lixo, muito ao contrários, eles estão fazendo um trabalho útil para a sociedade. Vamos humanizar aquele lixão em primeiro lugar e isso pode ser feito com dinheiro local, sem Banco Mundial; o dinheiro local existe para isso, porque existe a contrapartida para todos os empréstimos do Banco Mundial. Então, como eu dizia, vamos esquecer o Banco Mundial, e vamos dar aquela contrapartida, e podemos fazer coisas muito, muito boas.


O primeiro passo seria a humanização do lixão dos Prazeres, que então passaria a ser uma reciclagem decente e organizada e com compostagem também. Eu acho que não precisa entrar em detalhes sobre o quanto vale o lixo. Longe de dar prejuízo, como ele dá nos esquemas tecnocráticos, o lixo pode dar renda, não digo grande, mas pode dar.


Ontem, eu estive toda a manhã reunido com o pessoal da Metroplan de Porto Alegre, discutindo justamente esse assunto. E nós verificamos que, pelos preços atuais dos resíduos de ferro, de outros metais, papéis, cartolinas e papelões, dos plásticos duros e do firme, dos vidros, dos ossos, de outros materiais ainda aproveitáveis, da lenha inclusive, futuramente talvez do couro e do pneu, mas vamos deixar isso fora por enquanto, só esses materiais de fácil reciclagem é que são os que hoje estão sendo reciclados, permitem um faturamento de aproximadamente 30 a quarenta mil cruzeiros por tonelada de lixo. E isso nas condições atuais de Porto Alegre. Pode ser que seja diferente aqui ou em São Paulo, não sei. Mas lá nós temos esse valor. E, se eu fizer um bom composto que pode ser feito no próprio lixão, e para isso agora nós temos equipamento adequado. Eu tive a sorte de poder trabalhar nesses últimos cinco meses com uma grande empresa onde dinheiro felizmente não era fator limitante, e nós conseguimos desenvolver implementos para a maquinaria que já existe em qualquer prefeitura, que nos permite fazer compostagem fácil e eficiente em grande escala. Nós experimentamos uma série de máquinas diferentes para revolver medas de composto ao ar livre, o que nos deu um resultado muito bom. É um equipamento para um trator, por exemplos, um trator D-4, que me permite revolver entre mil e duas mil toneladas de lixo por hora. Nós colocamos na frente do trator duas lâminas em forma de um arado, cada uma, arado duplo. Primeiro, o trator com a lâmina normal espalha o lixo ou o material. Na fábrica onde eu estou trabalhando, nós estamos usando cascas de eucalipto, serragem e o lodo da estação de tratamento secundário e terciário, um material muito mais pesado e muito mais difícil de revolver que lixo. Nós primeiro espalhamos o material, assim um metro de altura, com o trator, depois esse trator com esse equipamento, entra e abre estradas. A medida que ele abre estradas, ele está fazendo uma mede de cada lado. Quando ele faz a segunda passagem, ele reforça aquela meda. Quando todas as medas estão prontas, eu posso então entrar no meio da meda, abre a meda, onde era meda fica estrada, onde era estrada fica meda. Com esse método nós conseguimos revolver até 2 mil toneladas/hora, um revolvimento muito bom de lixo de qualquer material orgânico, um trabalho que antes era quase impossível, porque, com a carregadeira eu não posso fazer esse trabalho: a carregadeira não produz muito, ela tem que constantemente estar fazer marcha a ré. Então ela produz, quando muito, 20, 30 toneladas por hora. A carregadeira funciona para revolver composto em pequenas frentes de trabalho. Por exemplo, uma prefeitura que tem 10 ou 20 toneladas por dia pode trabalhar com a carregadeira. Aliás, é o que nó estamos fazendo agora no Rio Grande do Sul, na prefeitura de Bento Gonçalves, onde nós iniciamos um trabalho desses. E esse trabalho pode ser feito em cima dos lixões já existentes. Inclusive, com isso, nós disciplinamos os lixões existentes, e transformamos eles numa coisa aceitável e sobretudo humana também, além de ecológica.


Então hoje nós temos equipamento que nos permite fazer compostagem ao ar livre e é a única que realmente interessa, porque a compostagem das fábricas de composto não é completa e eu tenho que maturar aquele material depois.


O que nós verificamos é o seguinte: que se deve fazer uma catação prévia mínima, só de material grosseiro. As usinas [espaço em branco], por exemplo, requerem uma catação bastante intensiva e bastante na entrada. Essa catação terá que ser feita por assalariados. Ela é, portanto, cara e nunca é muito perfeita, porque o assalariado não tem interesse em fazer uma catação perfeita. Inclusive é quase impossível catar intensivamente um lixo bruto, imaginem um pedaço de metal, um tubo de pasta de dente, enrolado em jornal com feijão preto, com excremento de cachorro, e sei lá, tudo misturado. O catador não acha esse tuba de pasta de dente. Se for um pedaço de metal ferroso, o imã também não vai tirar: o imã ou levanta tudo ou não levanta nada nessa situação. Agora, se eu levar esse material para a compostagem, e compostar tudo junto, no fim da compostagem eu posso separar as coisas numa peneira rotativa. Agora, sim. Agora funciona o imã, funciona tudo. O que não quer dizer que eu não possa estar fazendo catação durante todo o processo. Se faz no início a catação grosseira das coisas grossas que estão em cima, os caixões, os pneus, as latas, as garrafas, as coisas que aparecem e que são fáceis de catar, essas se pode catar logo. Mas não precisa ser muito eficiente nessa catação, porque à medida que eu vou revolvendo as medas, esses materiais vão aparecendo e eu posso catá-lo um a um. O revolvimento da meda também me permite controlar perfeitamente as moscas. O lixo ao ar livre há sempre o problema de moscas como vocês todos sabem. Aliás, os lixões aqui têm verdadeiras nuvens de moscas. Mas se eu fizer compostagem com revolvimento sistemático, o problema da mosca é muito, muito fácil de controlar. A meda de um metro, metro e meio de altura por 2 ou 3 de largura, imediatamente, se aquece internamente, as temperaturas vão a 60, 80 graus. Então, naquele coração que está quente, é claro que não pode se desenvolver uma larva de moscas. Mas na parte externa, aqueles 10, 15, 20 centímetros da parte externa que não ficam quentes porque estão arejados demais, se ali se encontra um pedaço de carne, um pedaço de galinha etc., é onde a mosca prolifera. E entre a desova e a eclosão da mosca adulta, passam, conforme o clima 15, 20, 30 dias. Se nesses primeiros 20 a 30 dias eu der 2 ou 3 mexidas no meu composto, dois ou três revestimentos, que aquele material de fora venha para dentro, então o lixão, longe de ser fábrica de mosca, se transforma numa gigantesca armadilha de mosca, porque vêm as fêmeas de todo lado desovar ali, como as larvas depois morrem, eu estou limpando a paisagem de moscar, eu estou combatendo moscas. Não preciso nem de inseticida para isso.


Naturalmente a coisa tem que ser feita com um pouco de disciplina. Aí vem um aspecto importante: o tecnocrata vive dizendo: ah, mas isso é muito complicado, esse tipo de coisa não dá para fazer, o povo não vai colaborar, vai haver muita indisciplina etc. Interessante: quando se trata de fazer coisas mega tecnológicas, não há sofisticação que chegue, e sempre há gente capaz de aceitar essas sofisticações. Agora, quando se trata de fazer coisas simples, biologicamente inteligentes, aí eles acham que não é possível fazer sofisticação. Aí eles querem brutalidade, querem coisas brutais e simples, bossais como é um aterro sanitário. Isso é realmente uma coisa boçal.


Na realidade, portanto, nós não somos contra a tecnologia, nós somos a favor de tecnologias inteligentes, realmente inteligentes e sofisticadas, mas sofisticadas biologicamente e socialmente sofisticadas. Não sofisticadas apenas na brutalidade da máquina.

Não podemos, portanto fazer uma compostagem muito boa, muito simples, temos hoje o equipamento, não há prefeitura neste país que não tenha seus tratores. Aliás outra máquina que permite – e for em quantidade menor – que permite fazer uma boa revolução do composto é a motoniveladora. Se eu coloco a lâmina em 60º, ela me faz uma meda muito bonita, só não posso fazer uma meda muito alta. Mas, nós temos espaço neste país. Nós não estamos na Holanda com 14 a 20 milhões de pessoas num território que cabe 3 vezes dentro de Pernambuco. Nós temos espaço suficiente neste país. E quanto menor a prefeitura, mais espaço existe. Qual é a prefeitura que não pode ter acesso a meio hectare, um hectare, dois hectares de terra, um lugar para fazer esse tipo de trabalho, e que será trabalho feito pela comunidade local? Inclusive o investimento pode ser progressivo. As máquinas que eu vou ter que comprar, além das que a prefeitura já tem, por exemplo, uma enfardadeira e uma peneira rotativa, eu não preciso comprar no primeiro dia. Vamos começar fazendo a compostagem catando as latas, catando os ossos, os vidros, os plásticos. Quando eu tenho quantidade suficiente de latas, eu compro agora a minha primeira máquina que realmente a prefeitura tem que comprar: uma enfardadeira. Vamos enfardar, porque só enfardando eu consigo vendê-la. Mas essa mesma máquina que enfarda as latas, pode enfardar também papéis e plásticos. Já o valor do produto aumenta muito. Por exemplo, aquela pobre gente lá no aterro dos Prazeres poderia ter uma renda muito melhor...


(Fita 3 – lado 1)

... E eu me pergunto se é possível montar um esquema administrativo que administre esse tipo de coisa que nós estamos fazendo hoje, então é claro que nós também temos condições administrativas de fazer uma coisa como essa que eu estou propondo em cima daquele lixão com aquela gente. Tenho certeza que no meio daquela gente têm muitos líderes natos que, no momento que se der a eles a oportunidade, poderão fazer um lindo trabalho. Essa gente não é burra, ela é altamente inteligente, ela está – isto sim – tremendamente marginalizada por uma sociedade injusta. E esses são os problemas que nós temos que atacar. Não é trazer sempre mais dinheiro para cá, para fazer coisas cada vez mais concentradoras de poder que agravam exatamente esse tipo de problema.


E o composto que ali poderá surgir? Foi dito ainda há pouco uma coisa muito importante: que o nosso lixo, o lixo brasileiro em geral tem aproximadamente 60% de matéria orgânica. Tanto melhor: podemos fazer um excelente composto. A grande reciclagem de lixo da cidade de Amsterdã trabalha com um lixo que tem apenas 10 a 20% de matéria orgânica e, no entanto, eles fabricam por ano 200 mil toneladas de composto que vai para a agricultura. Assim num país que paga salários que estão na ordem de 3 mil [espaço em branco], ou seja, um milhão e meio de cruzeiro por um operário num lixão, pode ter lucro fazendo composto? Me foi dito há pouco que aquela fábrica de compostagem lá em Amsterdã não dá lucro. Mas eu tenho aqui no meu hotel, posso mostrar a vocês amanhã, uma reportagem na mais séria revista científica alemã – [espalho em branco] – onde justamente se fala desse lixão de Amsterdã, onde se diz que esse lixão está dando, ou melhor, que essa reciclagem de compostagem lá está dando um tremendo de um lucro. Tanto é assim, que eles estão, também dentro de um esquema tecnocrático. Querendo agora compostar o lixo de todo o país. Eles têm, inclusive, trens especiais de caçamba que transportam o lixo 200 km para fazer essa compostagem e reciclagem. Se para eles, como os salários que lá se paga, isso é negócio, imagine entre nós.

E esse composto teria uma grande aplicação. O pouco que eu vi de Recife, andando nos arredores dessa cidade, eu vejo em toda parte, lavourinhas, hortas, pequenos pomares e quase tudo tremendamente carente de uso. Ora, com uma fração de dinheiro também que está se gastando nesses aterros absurdos, nós podemos fazer o necessário fomento, dar um pouquinho mais dinheiro para a Emater para que ela ensine o pessoal a utilizar a matéria orgânica. Hoje ainda predomina uma visão absurda: que eu vejo que o pessoal nos seus quintais junta tudo quanto é folhinha seca e vai queimar e bota inclusive a cinza fora. E depois se admiram que aquela árvore esteja cada vez mais pobre, cada vez mais doente, cada vez mais atacada de praga.


Entretanto, eu tive também aqui em Recife, da outra vez que eu estive aqui, uma experiência tremendamente gratificante: me levaram na propriedade de um pequeno agricultor, um caboclo que não sabia nem ler, mas que estava li. Eu raras vezes vi uma pessoa tão alegre. O Padilha estava presente, não era? Eu raras vezes vi uma pessoa tão alegre e tão feliz. Aquele homem estava gozando intensivamente as alegrias da agricultura biológica. Ele reciclava tudo e tinha um solo cheio de minhocas e cheio de vida.


Ora, com esse composto, nós podemos levar toda essa agricultura circundante de Recife a fazer exatamente isso: acabar com esses venenos. Não é fazendo jazida de composto que eventualmente seria usada aqui a décadas. Aliás, aquele composto eu não usaria mais, por uma razão muito simples: ele estará [parte em branco] do lixão lá de Timbó. Nós poderíamos fazer coisas muito, muito lindas.


E a humanização do lixão dos Prazeres seria apenas o primeiro passo. Depois se aplicariam soluções como essa que a prefeitura de Olinda está aplicando, com descentralização cada vez maior. Em Olinda também, quando eu vi as pessoas que estavam trabalhando naquele pequenos composto, o lixo coletado inclusive a bicicleta, eu vi uma coisa que dificilmente eu vejo nas obras mega tecnológicas: eu vi gente feliz, gente alegre, entusiasmada com aquele que estava fazendo.


E aí está uma das diferenças fundamentais entre as tecnologias duras e as tecnologias brandas. As tecnologias brandas são humanas, elas movimentam o homem a nível de comunidade: ele entende o que está fazendo, e sabe que aquilo é importante e, portanto, ele acaba gostando de fazer aquilo que ele faz.


Agora, a pessoa inserida num gigantesco aparelho de infraestrutura tecnológica, mega tecnológica, é sempre uma pessoa marginalizada e em dependência total. E é por isso também que nós temos cada vez mais desemprego, porque nós só fazemos esse tipo de coisa onde a vantagem está com o dono da máquina, não com as pessoas que fazem o trabalho.


Então, numa segunda fase, se deveria aplicar naqueles bairros em que isso for possível, reciclagem local do lixo em canteiros de obras pequenos, e Recife é tão grande e tão diversificada, tem tanta área verde no meio das áreas urbanas que não falta lugar, certamente não falta. O que falta é vontade e enfoque de fazer esse tipo de coisa.


E numa fase posterior ainda, ou talvez concomitante, nós podemos ensinar pelo menos àqueles cidadãos que têm jardim a fazer eles mesmos a compostagem em casa. Eu, desde que me conheço, nós nunca botamos lixo na rua na minha casa. Aliás, eu nem tenho lata de lixo. O que acontece na minha casa, dentro da cozinha, eu tenho suas latas de lixo: numa vai o lixo perecível, orgânico, o que vai para o composto no fundo do meu quintal. Mesmo quando eu tenho mais composto do que eu posso usar no meu jardim, não falta quem venha me pedir composto. O resto, o material não perecível, os papéis, os plásticos, os vidros vão para outra lata. E 3, 4 vezes por semana bate a campainha lá em casa e vem os recicladores, os caras que levam o papel, levam os vidros. E eu não tenho que chegue. Eu gostaria de ter mais para eles. Só de ver a alegria daquelas pessoas receber um papel limpo, que não precisa estar catando no meio de outras porcarias. O plástico, aí, tudo se recicla.


Então, eu não posso aceitar, e isso eu faço questão de mencionar de novo, aquilo que foi dito no final da explanação anterior à minha: de que não aceitar este Projeto significaria continuar fazendo as porcarias que hoje se faz. Muito ao contrário: nós temos alternativas muito, muito boas, muito melhores e, sobretudo, mais humanas.


E agora eu quero dizer algumas coisas sobre o aterro Timbó, que eu tive a desgraça de ver a última vez que estive lá. Realmente aquilo é uma coisa revoltante. Eu peço perdão se eu uso linguagem... eu sou daquelas pessoas que falam como pensam. Mas, quando eu vi aquilo, eu fiquei realmente chocado. Escolheram o pior lugar para fazer o aterro. Se pelo menos tivessem escolhido um lugar de planície, fazer um aterro tradicional, convencional, dentro de todas as regras do aterro dito sanitário. Com tanta planície aqui nos arredores do Recife, escolheram, primeiro uma das últimas reservas florestas de floresta atlântica, uma das mais bonitas que eu já vi. Uma floresta que estava intacta, que não estava ameaçada, enquanto que os morros aqui perto do Aeroporto estão naquele estado absurdo de erosão total, aquilo estava intacto. Logo ali foram botar essa coisa. Ali já foi cometido um crime ecológico inominável. Aquilo que deveria ser uma área de reserva biológica, de recreação para aquele bairro que ali está do lado, foi violentamente violentada, se faz ali uma terraplanagem, que, olha, os engenheiros responsáveis por aquela terraplanagem precisam ter as carteiras caçadas. Sim, aquilo é um absurdo total. Felizmente me mostraram essa coisa da outra vez que aqui estive. Parece que inicialmente não queriam me mostrar. Cortes. Movimentaram milhões de metros cúbicos num terreno extremamente vulnerável a deslizes, corte verticais de 30 ou mais metros de altura e um deslize depois do outro. Claro, eu gostaria de ser o dono daquela empreiteira, porque quanto mais deslize, mais dinheiro ele vai faturar. Um absurdo total. Além de ter destruído aquela floresta, uma agressão absurda naquela floresta, ele fere todas as regras do aterro sanitário convencional. Está em cima de uma rede de vertentes, por exemplo. Como é que jamais eles vão separar as vertentes do chorume. Uma engenharia, portanto, totalmente imbecil, não recicla nenhum recurso, como eu disse há pouco. E quanto ao gás? Eu me pergunto: quem é que precisa desse gás?


Ontem à noite, quando eu vim pra cá de avião, eu olhando pela janela do avião, eu vi a bacia de petróleo da Petrobrás em Campos. Ali se vê dezenas de labaredas de 100 metros de altura. O gás daqueles poços de petróleo está sendo imbecilmente queimado. Então, se por um lado nós estamos desperdiçando um gás precioso como aquele que, quando menos nós tínhamos que fazer, rebombeando ele para baixo para ser reaproveitado no futuro. Não é com esse pouquinho de biogás que vai se resolver algum problema. Aliás a proporção de biogás produzida num lixão desses é muito pequena, e em geral se custa a encontrar o que – o biogás é naturalmente uma coisa muito interessante, mas é interessante no biodigestor, em propriedade agrícola, onde se transforma o esterco com biogás e, ao mesmo tempo, numa coisa muitíssimo mais valiosa que é o biofertilizante que, além de dar ao meu solo, recuperar no meu solo a fertilidade biológica do solo, que já por esse lado eu obtenho plantação, o biofertilizantes – e isso é uma descoberta que nós fizemos recentemente aqui no Brasil, que é nova – o biofertilizante usado em aplicação foliar, é o melhor defensivo que se pode imaginar, e é defensivo mesmo. Eu uso a palavra defensivo no verdadeiro sentido da palavra, porque ele não mata nada, não mata nenhum animal, nenhuma praga, mas a planta fica livre de pragas, porque ele dá à planta tal força, tal vigor, que a praga desaparece.


Então, esse aterro é realmente uma das coisas mais absurdas que eu já vi. E o custo, se eu não me engano, é por volta de 20 milhões de dólares. Então ele está dentro daquele mesmo custo por tonelada/dia que estão essas outras grandes soluções tecnocráticas. Realmente eu não vejo como aquilo possa ser solução. E o custo de manutenção, e o custo em termos de organização de pessoal. Por que então não gastar esses mesmos ou muito menos recursos para fazer uma coisa muito melhor, um trabalho descentralizado, começando pelo aterro dos Prazeres e fazendo uma série de pequenos canteiros de obras espalhados e descentralizados, economizaria inclusive na frota de transportes, que seria muito mais eficiente, a coleta do lixo poderia ser mais completa, talvez se chegue rapidamente a coletar 100% do lixo.


E, sobretudo, seria soluções mais próximas do cidadão, onde o cidadão se desse conta, em primeiro lugar, da importância daquele trabalho e onde ele pudesse participar. Hoje o que acontece? Nessas soluções mega tecnológicas, o cidadão está completamente desligado delas, ele nem entende o assunto. Ele apenas reclama quando a coisa não funciona. Então ele põe a culpa nos administradores públicos: - tá vendo? Hoje não veio a luz, não veio a água, o esgoto não está funcionando, não vieram buscar o lixo. No momento em que essas soluções chegam mais perto do cidadão, isso contribui também para uma grande conscientização do cidadão. É o que eu verifiquei lá em Olinda. O que mais me impressionou lá em Olinda com aquelas soluções simples não foi a simplicidade das soluções; foi a aceitação que aquele povo deu a essas soluções. As ruas daquele bairro que receberam esse tipo de tratamento são tão limpas quanto as ruas de uma aldeia alemã. Nunca vi no Brasil uma favela tão limpa como aquela. Porque o povo quando viu que houve intenção de realmente ajuda-los a que eles se ajudassem, o povo aderiu.


Então, longe de chamar essas soluções atuais de avançadas, avançado seria o que eu disse há pouco: nós trabalhamos em termos de sofisticação biológica, ecológica e social. Não existe tecnologia mais sofisticada, mais incrivelmente sofisticada que as tecnologias da vida. Essas sim são incrivelmente sofisticadas. Vamos aprender a trabalhar com a vida, aprender a manipular a sofisticação dos sistemas vivos, em vez de ataca-los com brutalidade como foi feito ali. Aquilo é realmente uma obra brutal. E eu acho que ela deve agora ser tombada. Aquela obra deve ser tombada, deve ser deixada tal qual ela está como um exemplo para as gerações futuras, do tipo de perversão tecnológica que hoje predominava ainda. Então deixamos que com o tempo aquela mata volte a fechar aquelas férias, naturalmente vai levar 4 séculos ou mais, mas, enquanto isso, aquilo seria inclusive um lugar de recreação e sobretudo de contemplação sobre os absurdos da nossa atual situação.


E eu quero terminar mencionando mais uma vez um aspecto fundamental:


o que nós precisamos hoje são tecnologias fundamentalmente diferentes. Não se trata de combater a técnica. Não. Muito ao contrário: nós precisamos partir para o que nós na ecologia chamamos as tecnologias brandas. As tecnologias brandas são as tecnologias concebidas com o intuito de satisfazer as reais necessidades humanas.

Elas são tecnologias que integram o homem social e ecologicamente. Mas hoje predominam as chamadas tecnologias duras que são as tecnologias concebidas pelo poderoso em seu interesse, no interessa da concentração de sempre mais poder. É por isso que nós temos usinar nucleares e Itaipus e outras coisas por esse estilo e deixamos de aplicar soluções locais, humanas e ecológicas. É isso que eu queria dizer.



Dr. Aguinaldo Viriato de Mendes Filho:

Eu gostaria de agradecer ao Dr. Werner Zulauf e ao Dr. José Lutzenberger pelas palestras que fizeram e pelas experiências e conhecimentos que nos trouxeram nesta manhã.


Nós deveríamos agora dar início aos debates, às perguntas, em função do que foi exposto pelos dois palestrantes.


Apenas a título de esclarecimento, eu gostaria de – não sei se entendi bem e relação ao que colocou o prof. Lutzenberger, me parece que ele se referiu a que o custo do aterro sanitário seria de 36 bilhões de cruzeiros, cerca de 20 milhões de dólares. Eu gostaria só de fazer um esclarecimento de que o custo, incluindo equipamentos, aterro, enfim, todas as obras civis e equipamento, é de um bilhão e meio de cruzeiros.


Prof. Lutzenberger:

Em dólares, quanto foi?


Dr. Aguinaldo Viriato de Mendes Filho:

Um bilhão e meio de cruzeiro é alguma coisa em torno de um milhão de dólares, mais ou menos, menos de um milhão de dólares. É apenas um número, apenas um dado.


E também um esclarecimento, para mim pessoalmente como presidente de um grupo de trabalho e que estou muito preocupado em que nossas discussões possamos apresentar realmente soluções, eu achei muito importante algumas colocações feitas pela professor Lutzenberger em relação ao lixão de Prazeres e, sobretudo, a um maior cuidado que se deve ter, um trabalho mais profundo junto à própria comunidade, junto àquelas pessoas que hoje utilizam aquele lixão de forma desordenada, sem um amparo maior e que executam – como bem disse o Dr. Lutzenberger – um trabalho muito importante, e que hoje já se constitui numa atividade econômica significativa para aquelas pessoas. Dr. Lutzenberger fez algumas considerações em termos alternativos ao aterro sanitário que eu me permitiria pedir a ele que fizesse um esclarecimento para mim pessoalmente. Não sei se talvez é do interesse das outras pessoas.


Dr. Lutzenberger disse que seria importante que nós déssemos trajes adequados, botas, procurássemos dotar aquela área do lixão de abrigos, chuveiros, enfim, de uma infraestrutura mínima, leve que permitisse um trabalho ali executado ser executado de uma forma mais humana, porque realmente é um espetáculo dantesco aquele quadro. Mas isso me pareceu que, de certa forma, veio ao encontro de outras colocações feitas em relação ao aterro sanitários, que ele chamou de lixão tecnocrático, e eu achei uma expressão inclusive muito interessante.

Na mediada em que nós vamos dotar aquelas pessoas de botas, de equipamento, melhores condições para a catação etc., nós não estaríamos mantendo aquele lixão que diferentemente do aterro sanitário tal qual está proposto, não tem nenhum cuidado técnico, não tem nenhuma... enfim, nenhum tratamento adequado para aquele lixo que está ali colocado inclusive num local inadequado e que, hoje, segundo dados que nós temos, não suporta mais cerca de2 meses a 3 meses de colocação de material, de colocação de lixo, sob pena de saturação? Nós não estaríamos transformando um lixão que, como o nome próprio coloca, é um lixão não é uma terro sanitários, não estaríamos perenizando esse lixão, não estaríamos transformando num aterro sanitário, sem que aquilo tenho os cuidados que tem o aterro sanitário tal qual está proposto? Me pareceu uma certa contradição entre a crítica contundente ao aterro sanitário como solução técnica e o lixão dotando as pessoas de melhores condições para trabalharem no espaço do lixão, fazendo com que aquilo continue a existir sem nenhuma dessas condições.


Por outro lado, ainda preocupado em esgotar um pouco essas soluções apresentadas, me parece muito oportuno, muito importante o trabalho descentralizado. Eu acho que todos nós estamos em busca de soluções que visem cada vez mais tirar do Governo Central, seja ele o Governo Federal ou o Governo do Estado, a carga excessiva de atribuições que detém, e todas as soluções que venham ao encontra de uma descentralização do processo de planejamento do processo administrativo, do processo decisório e de execução? Eu acredito que seja uma coisa extremamente importante e oportuna que devemos todos procurar.


Então, me parece que todas as soluções que venham ao encontro de dotar as prefeituras municipais de maiores instrumentos, de mecanismos ágeis, mais fortes, fortalecer a ação municipal, elas são realmente extremamente importantes.


Então uma das soluções dadas pelo Dr. Lutzenberger é que justamente nós procuremos descentralizar a coleta, o tratamento e o destino final de lixo, dotando as prefeituras de equipamentos e condições para que possam, no espaço municipal, soluções municipais, utilizando a comunidade, encontrar suas próprias soluções. Isso me parece uma coisa realmente extremamente importante.


A colocação que eu faço é apenas o seguinte: 1º) Eu gostaria de ouvir do Dr. Lutzenberger, pela experiência que tem, inclusive internacionalmente, quais são as experiências que nós temos a nível nacional, sobretudo, considerando os padrões culturais, tecnológicos e de recursos, no Brasil, de soluções descentralizadas dessa forma? Acho que seria muito importante para o grupo de trabalho conhece-las. E, se na escala metropolitana – porque o Projeto em discussão não é um projeto para a cidade do Recife, não é um projeto para a cidade de Olinda, não é um projeto para nenhum municípios especificamente: é um projeto metropolitano, envolvendo 12 municípios; e é um projeto que visa justamente dar uma solução para cerca de mil toneladas de lixo que ficam hoje sem nenhum tratamento adequado. Então, eu pergunto ao prof. Lutzenberger se existe hoje uma experiência nesse sentido já em operação? E se ele entende que essa forma de trabalhar, fazendo a pequena coleta, fazendo a pequena destinação em pequenas áreas em cada municípios, e podendo daí fazer a reciclagem, todo esse processo que deve ser feito após o simples destino do lixo, se é possível nós pensarmos nisso a curto prazo, ou mesmo a médio prazo, tendo que vista já o colapso do lixão que temos ali em Prazeres que é hoje a única alternativa, embora extremamente negativa, sob todos os aspectos não é recomendável, mas se nós temos condições hoje de pensar a curto prazo num processo dessa natureza a nível metropolitano para colocá-lo em execução como alternativa a isso que está aí colocado. É apenas a título de esclarecimento, professor.


Prof. José Lutzenberger:

Bom, são três perguntas. A primeira, se humanizando o trabalho daquela gente lá não significaria estar perenizando uma coisa ruim? Muito ao contrário. Olha, se eu morasse aqui em Recife, eu arrendava aquele lixão pra mim, eu ia ficar muito rico. Eu arrendava ele pra mim. E ele não está saturado, não, muito ao contrário: eu já ia agora fazer aquilo que o Sr. Zulauf disse há pouco, que futuramente aquele lixão energético lá poderia servir de jazida para compostos. O lixão de Prazeres já é uma jazida de composto e uma jazida muito mais limpa porque não tem mais quase trapo e metais dentro, foi catado tudo ali. É puro composto. O que nós temos que fazer agora é arejar aquele material, usar o implemente adequado no trator, revolver aquilo, dar novamente uma última maturação aeróbia aquilo e vai sobrar espaço lá muito em breve, além do que nada impede de que ele por enquanto suba em altura. Aquilo dá para muito tempo mais.

E quanto à contaminação. É verdade que da maneira como ele está agora, ele está produzindo um tremendo chorume que vai para aqueles [espaço em branco], mas com muitíssimo menos terraplanagem do que esta que foi feita lá em cima e que ainda terá que ser feita, nós fazemos uma franja de argila e paramos esse chorume. É muito fácil. Com uma fração do dinheiro gasto e da movimentação de terraplanagem que está se fazendo e que ainda vai ter que se fazer se aquela loucura lá for levada adiante.


Então, esse lixão de Prazeres deve ser racionalizado, não somente em termos humanos, mas também em termos técnicos, e temos condições de fazer uma coisa tecnicamente boa lá. Hoje o caminhão que vem com o lixo larga em qualquer lugar, inclusive o povo muitas vezes não deixar largar direito, porque o pessoal já salta em cima. Essa coisa tem que ser disciplinada. Vamos começar a disciplinar a colocação do lixo em lugares certos. Enquanto aqui está sendo depositado o lixo, aqui ele está sendo, aqui o velho composto já pronto pode ser reaberto, pode ser movimentado, e depois peneirado e já levado à agricultura. Nós temos ali há hoje uma tremenda fonte de composto pronto e ele é muito melhor do que aquele que eventualmente poderia ter no de Timbó, porque aquele é anaeróbio e esse é aeróbio, ali até a madeira desaparece. No anaeróbio muita coisa fica intacta lá dentro. Então, isso é perfeitamente possível. Nós temos que isolar o chorume lá, o que é possível com uma fração da terraplanagem que já se fez e que está se fazendo lá em cima, e a deposição e a compostagem devem ser disciplinadas, é claro, que ali tem que haver um esquema administrativo, hoje aquilo está totalmente abandonado. E se esse lixão tiver que sair de lá por outras razões, inclusive fundiárias, nada impede que se faça uma coisa semelhante começada desde logo em termos disciplinados, num lugar mais adequado, inclusive mais alto que aquele, mais plano, não em montanhas e dentro de vertentes e dentro de reservas ecológicas como está se fazendo hoje.

A descentralização é possível imediatamente, não vejo porque. Nós já temos até uma experiência pequena ali em Olinda. Por que não fazer isso em todos os bairros, com financiamento mínimo? Esse dinheiro existe e existe a vontade de fazer isso.

Agora, quanto à experiência. É verdade que até hoje praticamente não temos experiência neste campo, porque até muito recentemente a sociedade de consumo era tal que ninguém dava valor a resíduo. Mas, essa coisa está mudando agora e está mudando radicalmente, inclusive quanto à visão dos próprios órgãos oficiais.


Lá no Rio Grande do Sul está acontecendo uma série de coisas muito interessantes. Eu pessoalmente estou colaborando em algumas delas. Cada dia mais prefeituras estão pedindo soluções simples. Eu recebo todos os dias telefonemas de pequenas prefeituras no interior do Estado que pedem soluções alternativas simples. E estão pessoalmente trabalhando com duas grandes casas, com 2 firmas grandes, a Tanac, por exemplo. A Casa Tanac é uma firma que produz tanino para a exportação, que planta cinco mil hectares anuais de acácia e na produção do tanino sobra um resíduo, acácia moída da qual foi extraído o tanino, e desse material, eles têm ali uma montanha de mais de cem milhões de metros cúbicos. Durante 40 anos foram botando aquele material fora. E continuam botando fora...


(Fita 3 – lado 2)

... desenvolvendo método de compostagem para esse material. Eu pessoalmente tenho há cinco anos uma pequena fabriqueta de composto. Possivelmente vocês vejam o meu produto nos supermercados aqui, é vendido para uso em samambaias, é um produto chamado “Solo vivo” ou “Terra viva”, tenho duas marcas. É feito com este material. E vejam, estamos vendendo ao consumidor este produto a mil cruzeiro o quilo, o que é um absurdo: a gente transporta do Rio Grande do Sul pra cá, com uma embalagem cara, porque infelizmente nesta sociedade de consumo, para vender esterco, a gente tem que vender em garrafinhas ou em sacos plásticos bonitos, senão a pessoa não quer. Bom, mas esse está sendo usado apenas para uso doméstico. Demonstra o absurdo das coisas que acontecem. Mas eu estou faturando muito bem com esse material, e gostaria de poder fazer coisas maiores. A semana passada, eu estive em Fortaleza. Vi um resíduo industrial lá melhor que o meu: a fábrica de óleo de oiticica tem do lado dela uma enorme montanha de um material belíssimo já lindamente compostado, aquilo é puro uso, e ninguém vai lá buscar.


Na mesma Fábrica Tanac, em que eu estou ajudando a fazer o composto, no primeiro dia do meu trabalho lá, eu economizei para a fábrica 500 milhões de cruzeiros por ano, meio bilhão de cruzeiros. Por que? Eles plantam cinco mil hectares de acácia por ano e adubam ela dentro daqueles pacotes tecnológicos que a tecnocracia multinacional nos impõe: 150g por muda de um adubo NPK altamente concentrado 10 20 10. A maior parte daquilo é importado. E quando não é importado aquele nitrogênio é feito com petróleo importante ou que deixaria de ser importante se não fosse isso aí.


Os agrônomos durante anos fizeram exatamente isso: sempre aquele mesmo pacote tecnológico, e aí está o grande problema: o bitolamento dos nossos tempos, que não enxergam além daquele grande pacote tecnológico que eles foram treinados a aplicar.


No primeiro dia em que eu entro naquela fábrica, eu olho as caldeiras, as fornalhas, falo com os foguistas, e verifico que aquela fábrica bota fora por ano entre 700 e 800 toneladas de cinza, cinza de acácia. Eles compram 500 toneladas de adubo por ano, compram 500 milhões de cruzeiros de adubo por ano e botam fora o equivalente a 800 milhões. É um absurdo total. Agora, é claro que eles vão passar a usar essa cinza em suas acácias. Mas aqueles agrônomos que estavam há 10 anos lá nunca enxergaram essa cinza.


Na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, os arredores da cidade estão cheios de lixões de casca de arroz, de cinza de casca de arroz. Tem duas indústrias lá que produzem um total de 2 mil toneladas de cinza, do lado dessas fábricas está a Escola de Agronomia, considerada uma das mais famosas do Brasil, e até agora, nenhum professor daquela escola, nenhum aluno chegou a essa cinza, porque para eles aquilo não é adubo. É um adubo maravilhoso, é o melhor adubo que existe.


Mas agora, felizmente essas coisas estão mudando. Está surgindo um tremendo interesse e essas coisas estão mudando. Inclusive eu estou trabalhando com uma outra casa: com a Riocell. A Riocell é uma fábrica de celulose com a qual nós brigamos durante 14 anos. Uma briga feroz e violenta. Mas hoje, eles têm uma das estações de tratamento de efluentes que é uma das melhores do mundo. Realmente essa fábrica é hoje uma das mais limpas do mundo. Aí é que se vê a necessidade da briga. Se não fosse briga não terá acontecido isso. E essa estação de tratamento produz diariamente umas cem toneladas de um lodo biológico altamente valioso, de uma qualidade biológica fantástica, dá para criar minhoca, por exemplo, com ele, transformá-lo 100% em esterco de minhoca, uma coisa que vale no mercado internacional 150 libras por tonelada. Os ingleses importam da Itália; os árabas pagariam facilmente 250 dólares por esse tipo de coisa, mas eu acho que jamais nós deveríamos exportar, isso nós temos que usar aqui mesmo. Essa fábrica também partiu agora para a reciclagem. Eles estavam botando tudo isso fora, em gigantescos buracos, estavam fazendo também o aterro dito sanitário, porque não tinham outra solução, e foi a solução que lhes foi oferecida e, como aqueles diretores não eram biólogos, não sabiam ver o valor daquela coisa, foi o que se continuava fazendo: 100 toneladas de lodo biológico por dia, 30 toneladas de casca de eucalipto, 60 toneladas de serragem por dia, ou seja: 200 toneladas/dia de matéria orgânica belíssima.


Então nós temos aqui neste país milhões de hectares de solo exaurido, mortos por falta, gritando por húmus e, por outro lado, botando fora essa matéria orgânica. São dezenas de milhões de toneladas de matéria orgânica que nós estamos botando fora todos os anos. Só no meu Estado, no Rio Grande do Sul, estamos desperdiçando, pelas minhas contas, e não existe estatística – claro que não existe porque para as cabeças tecnocratas a gente não é recursos ainda, mas vai ser muito em breve – só no meu Estado estamos botando fora anualmente entre 5 e 7 milhões de toneladas de resíduos orgânicos que poderiam ser usados para enriquecer novamente a nossa agricultura, fazer um agricultura sã, sustentável e sem veneno.

Então, felizmente estão acontecendo coisas muito boas agora. A cidade de Pelotas começou a reciclagem do lixo. Teve, infelizmente que acabar com ela, por que? Por causa desse absurdo, indecente sistema centralista que nós temos hoje em nosso país, a prefeitura de Pelotas está tão quebrada que há 6 meses não paga os seus funcionários inclusive. Então eles não tinham mais como continuar esse trabalho. Mas lá nós fizemos experiências muito lindas de compostagem, conseguimos fazer um composto muito bonito, reciclamos todos aqueles materiais, e foi onde nós aprendemos a manejar as máquinas, com eles e com a Riocell. Foi na Riocell, onde testando tudo quanto era tipo de máquina, inclusive fizemos uma outra, uma Elicoid gigante na frente do trator que nos permite um revolvimento muito bom, mas chegamos à conclusão que o mais simples é esse arado duplo na frente do trator que faz uma meda perfeita e me permite mexer até duas mil toneladas com o D-4, imagina com o D-6 quanto eu posso fazer. E o trato que vocês têm lá naquele lixão, eu posso ensinar a vocês a fazer o melhor. Vocês mesmos fazem aqui, eu só dou a ideia, não precisa pagar royalty para ninguém.


A beleza dessas soluções é que elas não custam nada e por isso talvez muita gente não gosta delas, porque elas são baratas demais. Mas é perfeitamente possível disciplinar aquele lixão.

Agora os japoneses, se falando fora do país, no Japão, o lixo é tratado de maneira diferente. O japonês sabe o valor dos recursos, eles catam tudo e, onde possível, fazem as donas de casa entregar o lixo já separado.


Agora, a Europa não é modelo pra nós. Na maioria dos casos, as cidades europeias fazem coisas horríveis, há aterros indisciplinados. A cidade de Mishing tem um aterro que é uma vergonha, vai dar um problema muito grande em breve. Imaginem o aterro de Hamburgo, o que vai acontecer. Provavelmente vão ter agora que fechá-lo com uma imensa pirâmide de concreto, porque está saindo um chorume com dioxina. Durante anos, despreocupadamente, foram atirando lixo lá, fizeram uma gigante montanha, uma montanha que tem agora algumas centenas de milhões de metros cúbicos, e agora estão se dando conta do tremendo desastre que aquilo significa, e vão ter que gastar somas fabulosas para arrumar essa situação.


Entretanto, existe também na Alemanha uma experiência diferente: na cidade de Vitinhausen tem um projeto do pessoal da agricultura biológica que está fazendo compostagem em pequena escala, um pouco maior que essa de Olinda, aliás, bem maior, e em bairros ricos, com um sucesso muito bom, o povo colabora com entusiasmo, e o resultado como adubo é fantástico.


Aliás, em Porto Alegre, agora me lembro, nós tivemos também uma experiência que foi um sucesso, mas que depois a política destruiu de novo: as mulheres da Ação Democrática Feminina, uma entidade de luta social e ecológica, conseguiram há alguns anos atrás conscientizar um bairro inteiro para entregar o lixo já separado. Era a Campanha do Lixo Limpo. Inicialmente a prefeitura colaborou e os meios de comunicação colaboraram. A nossa TV Gaúcha colaborou, a conscientização foi fantástica: já no primeiro dia a coisa funcionou 100% naquele bairro, todas as mulheres entregaram o lixo, tal qual tinha sido previsto: o lixo limpo, separado de lixo perecível.


Mas, uma ou duas semanas depois, a própria prefeitura, não sei por que razões, sabotou o negócio. As mulheres se deram conta de que aquilo que elas com muito cuidado tinham separado, a prefeitura misturava de novo, botava no caminhão e no lixão. Então essa experiência fracassou não por razões técnicas; fracassou por razões políticas: o administrador do departamento de Limpeza Urbana, lá não sei porque, não quis levar adiante.


Mas experiências, se por um lado têm poucas, estão surgindo agora aos milhares aqui neste país. Especialmente lá no sul vai surgir muita coisa, e eu gostaria que vocês, daqui para diante acompanhassem os nossos trabalhos. Inclusive eu convido vocês a visitarem, logo que nós tivermos lá uns 10 dias de sol, visitarem o trabalho que estamos fazendo com a Riocell, de compostagem em grande escala.


Porque, realmente, quando nós falamos de descentralização, nós temos que nos dar conta que nem sempre é possível descentralizar também. Há aqueles lugares onde eu posso trabalhar descentralizado e há os onde não. O centro das grandes cidades não dá para descentralizar, é claro: ali eu tenho 500 ou mil toneladas/dia que têm que ser levadas para um lugar só. Agora, na periferia que eu posso fazer muita descentralização. Então, descentralização e centralização podem conviver.


Dr. Aguinaldo Viriato de Medeiros Filho:

Me parece que o nosso palestrando Werner Zulauf terias algumas considerações a fazer.


*Governo do Estado de Pernambuco. Relatório do Grupo de Trabalho Instituído pelo Decreto nº 9382/84. Volume IV – Transcrições das gravações magnéticas das reuniões realizadas em 11 a 13 de julho de 1984.

APRESENTAÇÃO

Este volume contém as transcrições datilografadas das gravações magnéticas, colecionadas nos Volumes VII a XI, das reuniões realizadas em 11, 12 e 13 de julho de 1984, no Centro de Convenções de Pernambuco, nas quais renomados especialistas realizaram exposições técnicas sobre temas específicos de Limpeza Urbana.

As referidas exposições, às quais se seguiram intensos debates, constituíram importante subsídio à missão do Grupo de Trabalho.


**Palestra de Lutzenberger em Recife, 11 de julho de 1984, reprodução do APJL. Texto transcrito por Sara Rocha Fritz.

Postado por Débora Nunes de Sá.


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