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Agricultura e Energia

Existem enormes quantidades de energia e matéria prima para ser salva ou produzida, enquanto faz-se uma agricultura e economia saudável novamente.


José Lutzenberger (1995)


Fonte: Diário do Sul, 12/06/1987, p. 4. Reprodução do APJL.

Por toda a América do Sul e África, maior parte da Ásia e até na Austrália, uma visão muito comum durante as estações secas é a queimada de matagal, mato ou pastagem. Na maioria deliberadamente, uma tradição imbecil, difícil de erradicar, já que muitas pessoas parecem acreditar que isso melhora as suas terras. Então, além do fogo devastador dos agricultores migrantes de corte e queima que vão comendo a floresta tropical e das queimadas no imenso desmatamento dos pecuaristas na floresta tropical, cerrado e outro ecossistemas, temos incêndios catastróficos como os recentes na Califórnia. Ao todo, centenas de milhares de toneladas de “biomassa” preciosa é destruída da maneira mas sem sentido todos os anos. Que desperdício incrível! A biomassa é energia solar armazenada, e muito mais. A última vez que eu estive em Cuba, em abril de 1994, ao longo da rodovia de Havana até Santiago de Cuba, eu vi dezenas de pequenos ou grandes incêndios ou campos queimados.


A vida em sua fantástica evolução e diversificação ao longo de três bilhões e meio de anos, sempre contou com a energia solar, com apenas algumas poucas exceções: certas bactérias nos respiradouros quentes no fundo do oceano ou em algumas fontes termais. Tornar-se solar era a única maneira de tornar-se sustentável. Se a nossa atual cultura industrialista global é para sobreviver e evoluir para um futuro duradouro, não existe outro jeito, mas tornar-se solar também.


Toda pessoa informada sabe que nossa atual ênfase em energia fóssil, onde queimamos todos os anos o que levou a Natureza até centenas de milhões de anos para depositar, logo levará ao colapso.


Até bem recentemente – historicamente, se olharmos para um horizonte de dez a quinze mil anos, menos de um por cento do total – a atividade humana mais essencial para a nossa sobrevivência, a agricultura, foi totalmente baseada na energia solar. Tudo na agricultura vem da fotossíntese. Não estaríamos aqui hoje se não fosse por isso. Mas agora, a maioria do que chamamos de progresso na agricultura usa mais energia de fora – majoritariamente fóssil – do que é fixado na fotossíntese, uma situação muito infeliz. É como se em um poço de petróleo, a bomba consome mais combustível do que traz.


Talvez em sua atual situação, Cuba pode agarrar uma oportunidade única de um novo começo e evitar os erros que agora tornaram-se predominantes por todo o mundo. Poderia tornar-se um modelo de sustentabilidade e de um estilo de vida agradável em sua magnifica localização no Caribe.


Os métodos do agronegócio moderno e da criação intensiva de animais levarão a um desastre e não devem ser copiados. Então vamos dar uma olhada neles e ver onde e porque eles são insustentáveis e quais são seus reais custos.

A sabedoria convencional no industrialismo moderno considera a monocultura das culturas comerciais – quando maior melhor – com sua intensiva mecanização e quimificação, a única maneira eficiente de alimentar as massas humanas existentes e o que ainda está por vir da explosão populacional. O argumento predominante diz que, enquanto na cultura camponesa tradicional, como a que prevaleceu na Europa até o século atual, em torno de 40%, as vezes até 60%, da população cultivou a terra para se alimentar e o resto do povo, hoje, numa economia moderna do Primeiro Mundo, apenas dois por cento, em alguns casos menos, são fazendeiros e conseguem alimentar toda a população e, mais frequentemente do que não, produz excedentes para exportar ou para destruir, para manter os preços certos...


A primeira vista, esse argumento parece irrefutável. Se é assim, não temos alternativa. Mas essa falácia é baseada em um absurdo, uma comparação reducionista. Devemos olhar a figura inteira, não só para as pessoas que chamavam a si mesmas fazendeiras antes e aqueles que são considerados fazendeiros hoje. Devemos comparar sistemas, não pessoas. O camponês tradicional como ele prevaleceu até a primeira metade deste século na maior parte da Europa e Ásia tinha um sistema integrado de produção e distribuição de comida. Um sistema que produziu seus próprios insumos. O fertilizante vinha dos animais – esterco – e a energia – um esboço – também. O fazendeiro também vendia a maior parte da sua produção diretamente para o consumidor na feira semanal.


Mas, o que é o agricultor moderno? Não muito mais que um motorista de trator! Ele é uma engrenagem muito pequena em uma enorme infraestrutura tecno-burocrática. Quando descrevem a economia, as estatísticas veem o trator e a colheitadeira como indústria de máquinas ou ferramentas, o campo de petróleo, o navio-tanque, a refinaria, são vistos como indústria de petróleo, pesticidas e fertilizantes sintéticos são indústria química e assim por diante. Porém na medida em que uma indústria, um sistema bancário ou o que for, produz insumos para a agricultura, manipula, transporta, embala, comercializa, pré-cozinha e congela alimentos, etc., nessa medida, faz parte do sistema de produção e distribuição de alimentos nessa economia. O sistema inclui escolas agrícolas, extensão e pesquisa agrícola. Para uma comparação verdadeira devemos realmente somar todas as horas de trabalho na economia moderna que vão direta ou indiretamente para a produção, tratamento e distribuição de comida, incluindo as horas que as pessoas tem que trabalhar para ganhar o dinheiro para pagar as taxas e inflação que paga todos os subsídios. Até onde eu sei, isso ainda não foi feito mas é fácil imaginar que também produziria um valor próximo de, se não mais que 40%.


Então, toda a parafernália química e tecnológica não melhoram realmente a eficiência da produção em termos de horas de trabalho. O que temos é uma redistribuição de tarefas dentro da economia e a criação de novas estruturas de poder que não existiam no passado, e a maior parte do poder está indo para corporações transnacionais, não para as pessoas. Praticamente toda a pesquisa hoje feita para mais “progresso” na agricultura, seja dentro da indústria química, da indústria de máquinas e até nas instituições estatais, ajudarão a concentrar ainda mais poder na mesma direção! Isso é particularmente verdade no novo campo da biotecnologia, como veremos mais adiante.


Então, ao comparar não apenas culturas individuais mas a produção total numa fazenda moderna com a da maioria das fazendas camponesas tradicionais, podemos também ver que os camponeses produziam comida cada vez mais diversificada e saudável por unidade de área. Não é verdade que apenas os métodos da agricultura moderna podem alimentar as massas. O oposto é verdade! No meu estado natal, Rio Grande do Sul no sul do Brasil, pode-se ver facilmente como nossos camponeses, chamamos eles de colonos, mesmo que agora já tenham perdido muito da sua antiga sabedoria, são mais produtivos por hectare do que nossas grandes plantações de culturas comerciais de soja para exportação que são tão “modernas” quanto a mais moderna fazenda americana ou europeia. E tem uma diferença significativa: os colonos produzem comida para o nosso povo, as grandes plantações alimentam gordas vacas no Mercado Comum Europeu.


Quanto à energia, basta olhar para os alimentos embalados em um supermercado moderno e pensar nas batatas sujas pela terra que nossas mães traziam da feira (outra raça à beira da extinção): toda a energia que é gasta nas máquinas, nos fertilizantes, nos venenos, e então nos plásticos, nos aditivos, no supermercado, propagando, etc., etc.


Mas a diferença mais fundamental e ameaçadora entre a agricultura camponesa e a moderna agricultura é a sua insustentabilidade. Mesmo onde os métodos modernos produzem mais por acre, eles o fazem à custa da produtividade futura.

Devemos tornar a agricultura sustentável novamente. Isso certamente não significa que temos que retornar para métodos primitivos dos fazendeiros camponeses, mas existe muito a se aprender com eles. Na verdade, até quase o fim dos anos cinquenta, as escolas agrícolas, pesquisas e extensão estavam indo para a direção certa. A busca era estender e melhorar a sabedoria tradicional com o conhecimento científico moderno. Depois da última Guerra Mundial, contudo, a indústria química impôs seus interesses nas escolas e pesquisas e praticamente tomou conta da extensão. A maior parte do agronegócio é hoje quase que totalmente dependente da indústria química transnacional.


Para melhor entendimento, nesse ponto, talvez seja útil chamar a atenção para o fato que fertilizantes sintéticos e pesticidas não entraram na agricultura porque os fazendeiros pediram por eles. Eles foram empurrados para eles pela indústria – inicialmente, frequentemente com forte resistência – com a ajuda do governo, do sistema bancário e, as vezes, mesmo por legislação especial. Eles foram o resultado do esforço de guerra durante os dois conflitos mundiais.


Durante a Primeira Guerra Mundial, os alemães, tendo sido cortado do salitre chileno pelo bloqueio dos Aliados, desenvolveu e aplicou em larga escala a síntese de amônia da Haber-Bosch que retira nitrogênio do ar. Eles precisavam de amônia para os seus explosivos. Quando a guerra acabou, a indústria tinha grandes estoques e capacidade de produção. Então, eles empurraram fertilizantes nitrogenados sintéticos para os fazendeiros e a grande indústria química de fertilizantes se desenvolveu.


Depois da Segundo Guerra Mundial desenvolvimentos semelhantes levaram ao crescimento fantástico da indústria de agrotóxicos. Os gases letais foram derivados, entre outras coisas, de compostos de ácido fosfórico para uso em batalha. Felizmente eles não foram usados. Depois da guerra foram reformulados e oferecidos para a agricultura como inseticidas. Os americanos desenvolveram potentes matadores de plantas com a intenção de destruir as plantações japoneses do ar. A bomba atômica veio primeiro, os japoneses assinaram o armistício. O primeiro carregamento voltou. O grupo de 2,4-D e “herbicidas” relacionados foi então forçado na agricultura. Na Guerra do Vietnã eles vieram a ser usados em guerra afinal. Dezenas de milhares de quilômetros quadrados de selva foram “desfolhados” (um eufemismo para destruição total) pelo ar para impedir que os Vietcongues se escondessem. Quanto ao DDT, ele foi usado primeiro no front do Pacífico onde os soldados americanos estavam sofrendo de Malária. Sem as duas grandes guerras, a pesquisa agrícola poderia não ter sido pervertida do modo que foi. Teríamos certamente uma situação mais sustentável e saudável hoje.


Por que insistimos tanto na agricultura, sendo o assunto dessa Conferência biomassa para energia? Porque, se conseguirmos reverter a atual situação, tornar a agricultura sustentável novamente, não apenas salvaremos enormes quantias de energia que hoje são inutilmente desperdiçadas, mas, com silvicultura, indústria e saneamento, a agricultura se tornará a fonte mais importante de energia de biomassa, sem comprometer a produção de comida. Pelo contrário, produzindo mais e melhor comida.


Para se livrar de seu dilema atual, a agricultura precisa voltar a ser orgânica.

Ao longo de mais de cinquenta séculos, os camponeses sabiam manter seus campos altamente produtivos com apenas manejo orgânico do solo. Toda a matéria orgânica dos campos que não era consumida pelos humanos e animais retornava para o solo assim como os excrementos, animais e humanos. Onde a madeira e outras biomassas eram queimadas para combustível, as cinzas também retornavam para o solo.


Hoje quase perdemos essa sabedoria fundamental. Enquanto a população cresce, mundialmente, centenas de milhões de hectares de antes solos férteis são degradados e envenenados todos os anos, bem como desgastados por erosão desnecessária. Ao mesmo tempo, na criação intensiva de animais, na indústria e no saneamento, centenas de milhões de toneladas de matéria orgânica preciosa que deveria retornar ao solo é irreversivelmente desperdiçada, destruída ou jogada fora. O paradigma predominante no desenvolvimento econômico e tecnológico vê apenas o fluxo unidirecional de materiais – do ecossistema, mina ou campo petrolífero, através da indústria e consumo para o para lixo e despejo ou incinerador, enquanto todos os sistemas vivos sempre basearam sua sobrevivência numa total e perfeita reciclagem de todos os recursos materiais. Apenas a energia, sempre solar, é um fluxo não reversível, mas considerando que nossa estrela vai continuar queimando por quatro ou cinco bilhões de anos, é eterna para todos os fins práticos, enquanto materiais são sempre limitados.


A primeira prioridade para uma economia saudável e sustentável deve ser a reciclagem de todos os resíduos orgânicos. Os ciclos que abrimos devem ser fechados novamente. Vamos dar uma olhada na situação absurda de desperdício nas economias modernas.


Toda cidade, hoje, tem seus lixões, selvagem ou ordenado, ou incineradores. A compostagem e triagem de materiais valiosos, como metais, papel, plásticos, vidros, etc., ainda é uma exceção. Quanto ao esgoto, na maior parte do Terceiro Mundo ele corre diretamente para nossas sarjetas e no riacho, lago ou mar mais próximo. Em alguns países de Primeiro Mundo, na maior parte da Europa Central, por exemplo, onde quase toda cidade ou vilarejo tem estações de tratamento de esgoto, o uso do lodo está se tornando uma exceção. Em vez de impedir que o esgoto se contamine na fonte com metais pesados e toxinas da indústria, o que seria muito mais fácil e barato, o lodo é seco com a absorção de alta energia e então incinerado, as cinzas sendo levadas para lixões especiais e caros. Totalmente insano!


Na fazenda camponesa, o esterco sempre foi uma solução, não um problema. Na moderna criação intensiva de animais isso tem se tornando quase que um problema insolúvel. Novamente, na Europa Central, milhões de toneladas de chorume das criações intensivas de porcos foram simplesmente considerados resíduos. Até muito recentemente muito disso era até mesmo jogado no mar do Norte ou ilegalmente deixado em córregos. A maior parte é agora aplicado em campos de milho de tal maneira que causa a lixiviação de nitratos nas águas subterrâneas, e esses poços não revestidos tornaram-se fontes inadequadas de água potável.


Mas chorume é algo que nem deveria existir. É o resultado de uma forma indecente de manter os animais em campos de concentração. Uma vaca saudável no pasto e com palha no estábulo ou um porco com o mínimo de espaço decente para viver são naturalmente limpos. O estrume deles ou retorna diretamente para o solo para enriquece-lo ou pode ser facilmente manuseado na compostagem, biogás ou outros jeitos produtivos.


Mas, enquanto ainda tivermos absurdos como o lodo da criação equivocada de animais, devemos cuidar disso de uma forma mais inteligente. Ao invés de simplesmente tentar descartar as coisas de um jeito que causa problemas adicionais e, mais comumente do que não, requer quantias de energia bastante elevadas, podemos usar isso para produzir energia, ao mesmo tempo que também contribuímos para plantações mais saudáveis e comida mais limpa. A solução é a digestão anaeróbica – biogás. Em um biodigestor de biogás simples mas bem manuseado até 60% da biomassa presente no lodo pode ser transformada em metano, um combustível gasoso muito prático para usos estacionários em aquecimento, cozinha e iluminação. Grandes digestores podem produzir gás o bastante para operar pequenas centrais elétricas. Como sabemos, também pode ser usado em veículos, mas isso requer uma tecnologia de purificação, compressão e armazenamento bastante complexa.


Mas, de igual importância, se não mais, do que a energia renovável, é outro resultado precioso dessa simples tecnologia suave: o lodo maturado que sai do digestor é um maravilhoso fertilizante biológico líquido. Ele é fácil de aplicar e restaura a fertilidade do solo, promovendo um solo intensivamente vivo. Também observamos que quando aplicado de forma diluída, como um spray foliar, ele estimula o crescimento da planta e fortalece a resistência da planta a pestes e doenças. Então, ao contrário do que acontece na atual agricultura convencional, isso salva duplamente a energia - economiza o fertilizante químico que só pode ser produzido com um grande gasto de energia e economiza os pesticidas que são igualmente exigentes em energia. Na verdade, devemos dizer três vezes, considerando a energia adicional que isso produz. O verdadeiro uso dessa tecnologia, no entanto, deve ser pelo fazendeiro, especialmente o pequeno produtor. Isso pode ajudá-lo a tornar-se independente das corporações químicas e dos bancos. Digestores simples, eficientes e baratos podem facilmente ser construídos pelo próprio fazendo, com a ajuda do encanador e pedreiro da vila. Nos trópicos é ainda mais simples e eficiente, nenhum gás precisa ser usado para aquecer o digestor, como nos climas mais frios. Mas lá o fazendeiro não deve usar o chorume – um pequeno fazendeiro não deveria ter chorume – mas todo tipo de lixo orgânico, de estrume, até o lixo da cozinha e excremento humano.


Devemos agora apontar para outro engano da tecnologia agrícola moderna. A criação intensiva de animais - confinamentos de gado, masmorras para porcos, campos de concentração de galinhas ou fábricas de ovos, não vamos ser enganados pelos eufemismos - deve nos dar a máxima eficiência. Isso novamente é uma mentira. Esses esquemas destroem mais comida, comida humana, do que produzem.

É fácil de observar como. Vamos olhar para a galinha: enquanto o frango vagava livremente em volta da casa e pomar do agricultor elas comiam apenas o que os humanos não comiam: minhocas, gafanhotos, sementes não digeridas no esterco de gado e cavalo, resíduos verdes da horta, lixo da cozinha, etc. Nessa situação eles aumentaram a capacidade de carga da terra do agricultor para humanos. Nós não comemos minhocas, insetos, etc., mas comemos o frango e o ovo. Mas com o que alimentamos o frango nas operações intensivas atualmente? A chamada ração cientificamente balanceada ou alimento concentrado é majoritariamente grãos. Grão é alimento humano, comida que podemos consumir diretamente. Então essas galinhas fica com a comida que temos que plantar para elas! Colocamos elas em uma posição onde competem conosco, ao invés na de nos alimentar. E qual é a taxa de transformação? A “fazenda” de frangos modernas mais eficiente opera com taxas em torno de 2.2 para 1. Isso é, mais de dois quilos de comida produzem um quilo de peso vivo de galinha ou ovo. Se permitirmos o fato de que não comemos asas, ossos, intestino e outras parte do animal inteiro e permitirmos então por 80% de água na carne mas apenas por volta de 12 por cento na comida concentrada que foi seca com grande gasto de energia, ficamos com uma taxa perto de 18 por cento ou 20 para 1. Ultimamente, a taxa está melhorando, à medida que as pobres criaturas são forçadas ao canibalismo. A comida agora contém as miudezas do matadouro.


Longe de contribuir para a solução do problema de alimentar as massas humanas, a criação moderna intensiva de animais agrava isso. Enquanto dá alguma comida de luxo para os ricos, contribui para mais privação para muitos dos pobres; mas ela cria dependência e constrói estruturas de poder. O dono de uma “fazenda” moderna de galinhas talvez tenha a ilusão de ser um empresário independente, na realidade ele é um trabalhador sem salário garantido e sem seguro social. Todos os riscos ficam com ele, todas as possíveis vantagens ficam com a companhia que opera o matadouro, que possui a fábrica de ração e o incubatório. Ele precisa comprar todos os seus insumos da companhia e a companhia é a única que pode comprar seus produtos. Eles controlam todos os preços e comandam todas as condições. O agricultor talvez tenha uma plantação de milho, mas o contrato de “integração vertical” que ele tem que assinar, proíbe que ele alimente as galinhas com o seu milho, ele só pode usar a fórmula pré-misturada, mas ele pode vender seu milho para a companhia usar em sua fábrica de ração - a preços que eles comandam.


É importante entendermos que muito do que hoje vale para o progresso tecnológico é o resultado, não necessariamente da busca por soluções realmente racionais, mas, antes, do crescimento das estruturas de poder tecno-burocráticas. Pode não ter se desenvolvido intencionalmente, mas, tecnologia e poder interagem. A medida que o poder cresce, controla a tecnologia. No fim, apenas aquelas tecnologias que mantenham e promovam o poder serão selecionadas, pesquisadas e impostas.


No caso da criação intensiva de animais também não foi invenção dos agricultores. Isso, também, é o resultado dos esforços de guerra. Durante a última grande guerra os americanos, com seus subsídios para a produção de grãos foram subitamente confrontados com enormes excedentes para os quais eles não tinham nenhum uso. Então, à algumas escolas agrícolas foi dada a tarefa de pesquisar usos não-humanos para os grãos. Uma vez que as “fazendas” de frango estavam operando em larga escala, os interesses investidos também cresceram. Hoje, até para porcos, temos uma “integração vertical”, onde a mesma companhia possui e opera o matadouro, a fábrica de ração e as porcas matrizes. O “fazendeiro” recebe os leitões e a ração e precisa entregar um porco engordado. Ele é um mero apêndice de uma grande companhia.


O modo que a biotecnologia está sendo agora apropriada pela indústria de agrotóxicos, o fazendeiro vai perder ainda mais da pouca autonomia que ainda lhe resta. Durante as últimas duas décadas a indústria química comprou quase todas as companhias de sementes, com a intenção de controlar os cultivares. Eles querem colocar variedades geneticamente modificadas no mercado, variedades que são patenteadas, que o fazendeiro não é permitido reproduzir ele mesmo, ou não consegue reproduzir, como no caso do milho híbrido, ou as marcas (não raças) híbridas de frango nos campos de concentração de frangos. Pior ainda, não apenas eles querem controlar os cultivares agrícolas, que já é bastante ruim, eles estão agora concentrando um grande esforço e dinheiro no desenvolvimento de variedades resistentes aos seus pesticidas, ao invés de resistentes a pestes.... Um de seus grandes sonhos é uma semente revestida com fertilizante, com fungicida, inseticida e com um herbicida total que mata qualquer coisa que germine perto dela, mas para a qual aquela variedade em particular, para a qual eles tem a patente e registro, é resistente! É por isso agora há tanto pressão nos deputados e senadores dos parlamentos nos países do Terceiro Mundo para a aprovação de leis que tornem o patenteamento de seres vivos possível. A GATT está empurrando o mesmo esquema com ênfase no “direito de propriedade intelectual”, nenhum valor é dado para a sabedoria do agricultor. Por séculos, através de seleções conscientes ou inconscientes, os agricultores desenvolveram a fantástica biodiversidade dos cultivares existentes. Os geneticistas modernos e os splicers de genes construíram a partir dessa sabedoria. Se permitirmos que as tendências atuais continuem, o agricultor terminará numa situação não muito melhor do que a do trabalhador numa linha de montagem. No final, tudo sera controlado por grandes negócios.


Eu espero que eu não seja incompreendido. Se pareço me afastar de discussões técnicas estritas sobre biomassa para energia, isso é porque apenas se entendermos as verdadeiras razões da situação absurda na produção moderna de alimentos e da tecnologia em geral, seremos capazes de fazer algo para conter a maré. Cuba está agora numa situação particularmente crítica. Ela tem a chance única de ir para um caminho novo, sustentável e humanamente significativo ou de repetir erros e ficar preso com todo mundo. A moderna cultura industrial global deve agora repensar sua tecnologia, seus objetivos. Cuba poderia ser um lugar incrível para iniciar um trabalho prático na nova direção.


A última vez que eu estive em Cuba eu vi uma grande atividade convencional de porcos abandonada. O fornecimento de alimentos concentrados parou com o colapso da União Soviética. Por toda a volta do chiqueiro, os campos abandonados na paisagem eram quase impenetráveis com um bosque de luxuriante vegetação nativa, (parcialmente queimada) atestando a incrível produtividade dos trópicos. Meu Deus! Que desperdício! Cuba não precisa importar ração de porco, gado ou galinha do exterior, muito menos de um clima frio. E tem muita gente inteligente por aí disposto a fazer um trabalho inteligente.


Na nossa fundação, a Fundação Gaia, aprendemos a alimentar os porcos com comida que nos custa quase nada, exceto trabalho. Os porcos adoram todo tipo de vegetação e precisam disso para sua saúde. Um tipo de vegetação que é incrivelmente produtiva nos trópicos e sub trópicos são as plantas aquáticas flutuantes: Eichhornia, Pistia, Limnobium, Heteranthera, Salvinia, Myriophillum, Lemna, Spirodella, gramas da água e muitas outras. Eichhornia, o aguapé, nos trópicos, pode produzir mais de 500 toneladas de biomassa, matéria seca, por hectare por anos, se a água é suficientemente rica em nutrientes, isso é, suficientemente poluída com esgoto, por exemplo. A alienação predominante em nossa atual cultura industrial, no entanto, gosta de ver o aguapé como uma peste e, quando possível, mata-o com herbicidas. Mas, as plantas aquáticas realizam dois trabalhos de uma só vez: elas produzem muita comida, enquanto limpar água suja, evitando assim que nutrientes preciosos sejam perdidos para o oceano.


A matéria seca das plantas aquáticas contêm mais de vinte por cento de proteína. O resto é na maior parte fibras, indispensáveis para uma boa digestão. Existe um déficit de energia, no entanto, isto é, de amidos. Nós complementamos com farelo de arroz. Em Cuba há muita energia disponível para os porcos. Não existe nada que os porcos pareçam gostar mais do que mastigar cana. Os porcos adultos dão conta facilmente, para os leitões basta cortá-los com um facão.


Nosso experimento é de algum modo diferente, mas ainda assim aplicável em Cuba. Nós alimentamos nossos porcos com plantas aquáticas e com o conteúdo estomacal autoclavado com a quantidade correspondente de sangue de um matadouro, mais o farelo de arroz.


Tem um outro experimento interessante e de bastante sucesso no nosso estado. Um grande curtume, cerca de dois mil couros por dia, consegue engordar mais de doze mil porcos por ano com seus resíduos. Antes, os couros iam para o processo como vinham do matadouro, só o sal era lavado. Em seguida, os rejeitos eram primeiro cortados e levados para o depósito de lixo da cidade. Isso economizou produtos químicos, mas causou sérios problemas com mau cheiro e moscas no lixão. Agora, os rejeitos são autoclavados com farinha de milho e alimentados aos porcos. Infelizmente, os porcos ainda são mantidos da maneira convencional. Então, existe algo em torno de trinta toneladas por dia de lodo para descartar. Esse material é agora usado como fertilizantes em cento e cinquenta hectares de milho e cinquenta hectares de maçãs. O milho vai para o alimento dos porcos, as maças são de excelente qualidade e quase livres de químicos. O esquema pode ser melhorado, mas já é um exemplo de como, o que normalmente é visto como resíduo inútil, pode ser usado preciosamente.


Pessoalmente eu sou um agrônomo, mas pelos últimos vinte anos, como consultor e pequeno empresário, eu tenho trabalhado majoritariamente em saneamento. Eu quero contribuir para uma agricultura saudável e sustentável. Como foi pontuado acima, os ciclos devem ser fechados novamente. Mas o saneamento também precisa de uma revolução. O paradigma predominantes precisar ser invertido.


A razão porque a maioria das cidades, grandes e pequenas, no Terceiro Mundo e muitas vezes no Primeira, não têm tratamento de esgoto nenhuma reciclagem sensata de lixo e entulho é porque os administradores são confrontados apenas com soluções extremamente caras, complexas e centralizadoras para as quais não existe dinheiro. Mas, quando o esgoto e o lixo são manuseados de forma descentralizada, várias soluções simples e baratas estão disponíveis, soluções que fazem o cidadão participar. O lixo pode ser classificado na fonte para reciclagem e compostagem. Aquelas famílias que tem jardins podem fazer sua própria compostagem da parte orgânica. Se o esgoto é manuseado separadamente em cada tanque de captação, pode quase sempre ser tratado em lagoas com plantas aquáticas, seja plantas flutuantes ou plantas de pântano enraizadas em um sistema que faz com que o esgoto percorra a área das raízes.


Esses métodos simples podem também ser aplicados para muito dos problemas de efluentes e rejeitos industriais.


A maioria dos sanitários convencionais quer vender projetos caros, então instalar usinas cada vez mais sofisticadas e caras, a ideia é fazer desaparecer coisas indesejadas, definidas como sujeita, rejeito, etc. No fim isso quase sempre acaba em lixões ou incineração. Na Alemanha, hoje, a disposição do lixo normalmente custa as comunidades mais de US$200, - a tonelada. O rejeito industrial vai para milhares de dólares a tonelada. Em uma de minhas operações, temos um cara com sua família de quatro separando cerca de dez toneladas de lixo doméstico e de escritório por dia e fazendo entre quinhentos e oitocentos dólares por mês da venda do papel, vidro, borracha, metal e plástico para a reciclagem.


Se aplicarmos tecnologias suaves, as soluções são sempre simples, baratas e socialmente desejáveis, assim como ecologicamente sãs.

Acabei de ouvir falar de um projeto na Argentina onde os efluentes de setenta curtumes deve correr até uma estação para tratamento coletivo. Isso seria a forma mais absurda de resolver o problema e não vai resolver nada, vai criar mais problemas. A solução correta seria descentralizar em cada curtume. O efluente de cada banho diferente dentro do curtume deve ser tratado separadamente. O cromo pode então ser reciclado com lucro, a matéria orgânica não vai ser misturada com o metal pesado e pode ser usada nos campos como um fertilizante orgânico. Antes disso, poderia produzir alguma energia na digestão do biogás. Além disso, quando os efluentes de diferentes banhos são mantidos separados, o curtume deixa de cheirar mal. Soluções desse tipo podem ser realizadas passo-a-passo, com quase nenhum gasto para a indústria.


Pessoalmente, com uma das minhas pequenas empresas tiramos entre 500 a 700 toneladas por dia de resíduo sólido de uma grande fábrica de celulose. Onde a empresa gasta mais de meio milhão de dólares por ano para enterrar as coisas em grandes covas, nós resolvemos o problema passo-a-passo. Temos 60 empregos e vivemos com o produto da venda dos materiais: fertilizantes orgânicos, estimulantes de plantas, cinzas volantes de carvão mineral para fábricas de cimento, sucatas e outros materiais valiosos.


Menciono esses poucos exemplos de soluções alternativas para provocar uma reflexão sobre tudo o que pode ser feito com os rejeitos de matadouros, laticínios, adegas, indústria de conservas de frutas, legumes, carne e peixe; com curtumes, fábricas de papel e celulose; serrarias e todos os rejeitos agrícolas que são perdidos hoje. Existem enormes quantidades de energia e matéria prima para ser salva ou produzida, enquanto faz-se uma agricultura e economia saudável novamente.


Nesse trabalho não entrarei nos outros usos de energia de biomassa já que serão tratados por outros apresentadores. O que eu quero enfatizar é uma nova filosofia – a necessidade de abordagens holísticas que levem em consideração a sustentabilidade ecológica, a preservação de materiais não renováveis assim como a justiça social e o significado humano.


A tecnocracia moderna quer sempre mais centralização e megatecnologia. Isso leva sempre a mais devastação, desperdícios, desenraizamento e alienação. Por todo o mundo hoje, podemos ver o rompimento final das últimas estruturas sociais restante que cresceram organicamente e historicamente estáveis, com significado humano, ecologicamente sustentáveis e belas: camponeses, artesões, pescadores, seringueiros, moradores da floresta e aborígenes, eles estão todos condenados. A globalização da economia como agora promovido pela GATT e outros tratados internacionais vão apenas acelerar esse desastre. Os últimos cinquenta anos já foram ruins o bastante. Testemunhe as favelas em todas as cidades do Terceiro Mundo e, agora, o crescente desemprego, mesmo no Primeiro Mundo.


Nós precisamos de soluções pequenas, inteligentes, concebidas socialmente, localmente ajustadas e adaptadas e, o mais importante, decididas localmente – um reinado livre para a genialidade das pequenas pessoas. Isso seria o verdadeiro socialismo!


Ernst Schumacher, em seu livro épico “Small is Beautiful”, cunhou o mais significativo slogan:

O que precisamos não é produção em massa, mas a produção das massas.

Vamos torcer que os cubanos consigam evitar os desastres que virão. Depois de tudo que sofreram, eles merecem!



*Texto endereçado por José Lutzenberger à Conferência da Terra sobre Biomassa para Energia, Desenvolvimento e Meio Ambiente. Realizada em Havana, Cuba, de 10 a 13 de janeiro de 1995.

Concluído e assinado por José Lutzenberger em 06 de janeiro de 1995.

Texto originalmente em inglês. Reprodução do APJL.


Texto transcrito e traduzido por Sara Rocha Fritz.

Postado por Débora Nunes de Sá.

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