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Ecologia, Ciência da Sobrevivência

A ecologia é uma ciência revolucionária porque ela nos obrigará a uma revolução, a uma reviravolta radical em nossa atitude diante do mundo em que vivemos.


José Lutzenberger (1972)


Correio do Povo, 17/12/1972. Fonte: Reprodução do APJL.


Como todos os aspectos do conhecimento humano, a ecologia tem muitas definições, dependendo do ponto de vista. A mais banal, a que seria a ciência, é de que se trata do estudo das relações dos seres vivos entre si e com seu ambiente inorgânico, mineral e meteorológico, ou seja, do estudo do funcionamento da natureza. Uma definição mais moderna seria de que a ecologia é o método da “dinâmica de sistemas” aplicado aos sistemas de suporte de vida da biosfera, sistemas estes que, em seu conjunto constituem o que passou a chamar-se a “ecosfera”, este grande sistema dinâmico formado pela tênue capa de cia que caracteriza nosso planeta, distinguindo-o dos demais planetas do sistema solar. Ressalta-se, assim, o caráter dinâmico da ecologia, porque ela é uma análise de processos, dos processos dinâmicos dos sistemas naturais.


Outra definição, de maior atualidade na presente situação do globo, é de que a ecologia é a ciência da sobrevivência, uma vez que ela estuda os sistemas de suporte de vida da Terra. Acontece que há uns dois milhões de anos a natureza parece que cometeu um erro muito grave, um erro que talvez resulte falta. Aperfeiçoou um computador muito eficiente que deu a uma espécie um poder nunca visto sobre todas as demais. Mas esqueceu de impor a esta espécie um freio que disciplinasse este poder. A espécie assim privilegiada, começou então a usar sua força contra toa a criação, a usá-la com egoísmo cada vez maior, de maneira cada vez mais brutal.


Com o nosso fabuloso poder tecnológico, estamos hoje profanando, degradando, desequilibrando e destruindo sistematicamente, até a obliteração completa, um número cada vez maior dos sistemas de suporte de vida, dos quais depende nossa própria sobrevivência. Estamos nos preparando para a colocação do ponto final na história da vida neste planeta, o ponto final de três e meio bilhões de anos de lenta e paciente evolução.

Se quisermos sobreviver, precisamos conhecer melhor estes sistemas naturais, necessitamos compreender o funcionamento da ecosfera, necessitamos da ciência da sobrevivência, da ecologia.


Isto nos leva a outro aspecto da ecologia, o mais importante, o aspecto moral. A ecologia é uma ciência revolucionária porque ela nos obrigará a uma revolução, a uma reviravolta radical em nossa atitude diante do mundo em que vivemos.


O homem ocidental, que é o responsável pela sociedade tecnológica, industrial, que hoje domina o mundo, responsável desta cultura global que está arrastando, todas os demais, numa verdadeira avalanche de massacre cultural, independentemente das seitas puramente nominais em que se divide, independentemente de nomenclaturas ocas como capitalismo e socialismo, catolicismo e protestantismo, este homem ocidental tem um grave defeito. Ele está possuído de uma megalomania sem limites. Considera-se o dono do universo. Acha que tudo foi criado só para ele, para sua vantagem e seu deleite. Todos os demais seres vivos são para ele apenas objetos. Objetos dispensáveis que só têm sentido em função de sua utilidade imediata para ele, com os quais pode fazer o que quiser, inclusive esbanjá-los sem remorsos. Ele tem uma moral muito estreita, estreitíssima, uma moral que não inclui nenhum dos milhões de outras espécies, ela não inclui sequer seus próprios descendentes.


Pois a ecologia lhe está dizendo que está profundamente, tragicamente enganado. Ele não é o centro do universo, tampouco é a criatura mais importante deste pequeno astro perdido nas profundezas estéreis do espaço vazio. Ele é apenas um entre uma infinidade de atores num processo fabuloso, único. Ele é apenas uma peça nesta grandiosa orquestra da evolução orgânica. Se ele continuar a gritar muito forte acabará destruindo toda a sinfonia. A grandiosidade da sinfonia está justamente no grande número de instrumentos harmonicamente sincronizados.


Uma das primeiras grandes lições da ecologia é de que a estabilidade de um ecossistema, a estabilidade de toda a ecosfera, reside justamente no grande número de espécies participantes, no grande número de especializações dos setores que a compõem. Um ecossistema é tanto mais estável quanto maior o número de espécies. Será tanto mais vulnerável quanto menor for este número. A homeostase, ou seja, a capacidade de auto regulação, é função da variedade. O homem moderno tem o preconceito contrário. Acha que tem que supersimplificar os sistemas naturais. Onde nos confrontamos com a magnífica e variadíssima floresta amazônica, achamos que termos que arrastá-la para substituí-la por pasto simples, de uma ou duas espécies. Onde a natureza criou os ricos campos do Rio Grande do Sul, com suas centenas de espécies só de gramíneas e outro tanto de plantas herbáceas, ai preferimos virar tudo isto com o arado para fazer monoculturas estéreis de eucalipto que depois, ao passarem pelas fábricas de polpa, destruirão outros ecossistemas preciosos, igualmente complexos e importantes, os rios, lagos e mares.


Não é em vão que, à medida que “modernizamos” os métodos agrícolas, pela simplificação cada vez mais brutal de nossa paisagem, a ponto de acabarmos com o último capão, a última cerca viva, o último banhado, o último refúgio de flora e fauna, nos vemos obrigados a usar armas cada vez mais violentas para proteger nossas monoculturas da inevitável vingança da natureza. Mas com estas armas, os pesticidas químicos, apenas iniciamos um ciclo diabólico. A agricultura está hoje na situação do indivíduo drogado. Se não aprender em tempo a desfazer-se do vício, acabará usando sempre mais droga, com efeito sempre menos, até o desfecho inevitável.


Quase toda nossa tecnologia entrou num ciclo parecido. Ela começou como humilde servidor do homem. Hoje é seu mestre. O homem inventou a tecnologia para facilitar a satisfação de suas necessidades mais prementes. Hoje somos consumidores obrigatórios. Temos que consumir para manter girando as rodas da indústria. Produzimos para a lata de lixo e para a poluição. O produto nacional bruto tem que crescer, custe o custar.


Mas a maneira pela qual calculamos este índice é um contra senso, está longe de refletir o valor da economia para a qualidade da vida. Quando calculamos o produto bruto, adicionamos o valor monetário de todas as transições econômicas: das que refletem real vantagem, por tratar-se dos juros de nosso capital, e também das que em realidade representam empobrecimento, por corresponderem a consumo de capital. Por incrível que pareça, o índice que usamos para medir nosso sucesso economicamente inclui o empobrecimento da nação, a degradação da ecosfera, do lado positivo da conta, falsificando-a duplamente.


É como se quem tinha cem mil cruzeiros no banco, e que já esbanjou cinquenta mil, se regozijasse cada vez que que gastasse mais mil, considerando-se mais rico por isso. É o que estamos fazendo com o pinho, por exemplo. O valor da madeira consumida e exportada em terminado ano aparece nesta conta apenas como fator positivo, como se neste ano tivéssemos produzido riqueza correspondente a esta cifra. Mas estamos apenas esbanjando as últimas árvores de uma reserva outrora enorme. De fato, com cada exportação estamos mais pobres. Estamos hoje mais pobres do que trina anos atrás, mais pobres em termos absolutos e muito mais pobres em termos relativos, porque o pouco que sobra agora se divide entre uma população três vezes maior.


Outro exemplo flagrante: quando aumenta o número de acidentes aumentam os gastos de funerária, de medicina, de médico, enfermeira e hospital. Todos estes gastos engrossam o produto bruto e a renda per capita. Medimos o “progresso” também no aumento do número de hospitais, em vez de medi-lo no aumento da saúde geral que, então, exigiria menos hospitais. Os capitais e os recursos que terão que ser dedicados ao controle da poluição e para reparar os demais estragos ambientais são também adicionados no produto bruto. Estes estragos e os danos à nossa saúde tornam-se, assim, economicamente interessantes. Os economistas e os políticos só enxergam o fluxo do dinheiro e os balanços unilaterais. Esquecem que o que importa é a qualidade de vida.

É por causa desta conta errada que é tão difícil resolver os problemas ambientais. É porque não sabemos fazer contas que estamos destruindo o nosso belo planeta. A primeira obrigação do economista, do político, do engenheiro e do capitão da indústria deveria ser o estudo dos princípios fundamentais da ecologia. Saberiam, então, que a economia é apenas um capítulo dentro da ecologia, saberiam que as contas da natureza, as únicas que estão certas são bem mais elegantes e mais discriminativas.


No índice que refletisse de fato a qualidade da vida, que refletisse o verdadeiro progresso, deveriam estar descontados todos os fatores negativos. Veríamos logo que sobra pouco progresso. Se descontarmos toda a degradação da ecosfera pelo homem moderno, ficaria bem claro que estamos em regresso.


Se neste balanço real pusermos de um lado a produção de madeira e do outro o aniquilamento de capital que significa a destruição irreversível dos pinhais, veremos logo o mau negócio que estamos fazendo. O próprio índice nos obrigaria à conservação dos recursos. Se ao valor do papel confrontássemos todos os custos ambientais, veríamos que o preço do papel é um preço subvencionado pela comunidade e pelas gerações futuras. É por isso que esbanjamos papel e degradamos o ambiente. Os preços dos produtos e das tecnologias deveriam incluir todos os custos, principalmente os ambientais.


Na natureza não há esbanjamento. Apenas existe um fluxo aberto, o da energia solar, que é o motor da ecosfera. Todos os fluxos materiais fazem parte dos pequenos e grandes ciclos bio geo químicos que são todos os ciclos fechados. Os detritos e os cadáveres de uns são a matéria-prima dos outros.


Isto não é a novidade. Há muito tempo sabemos isto. Mas a nossa ideologia econômica ainda insiste no fluxo aberto. Os economicistas de todas as escolas tradicionais, capitalistas ou marxistas, encaram a economia como um fluxo aberto, não se interessam nem pela origem, nem pelo destino final deste fluxo. Não acreditam na necessidade do fechamento dos ciclos.

Nem no controle da poluição queremos fechar os ciclos. O lixo é incinerado e as cinzas são usadas para pavimentos, ou simplesmente depositamos o lixo no que chamamos de “aterro sanitário”, que de sanitário não tem nada, como não tem nada de sanitário o esgoto no rio. A fertilidade de nossos campos, mesmo quando não os destruímos pela erosão, acaba nos esgotos que poluem as águas. Para recuperar esta fertilidade perdida trazemos de longe os adubos químicos. Outro esbanjamento de capital, porque eles também acabam no esgoto. Para corrigir as consequências da abertura indevida de um ciclo, abrimos outro ciclo e assim por diante. Achamos que é vantagem quando dissipamos de maneira irrecuperável a matéria-prima que a natureza levou eras geológicas para concentrar, ou quando demolimos em minutos o que levou milhões de anos construindo.


Por causa desta cegueira aritmética não somente estamos arruinando a ecosfera diretamente, para o lucro imediato, mas também indiretamente, com o preço que só aparece a longo prazo.

Isto nos leva a outra lição fundamental da ecologia: tudo está ligado com tudo e tudo tem preço. O leigo costuma pensar que a natureza é apenas um aglomerado arbitrário de fatos isolados no espaço, no tempo e na forma e que estes fatos podem ser alterados arbitrária e impunemente. A realidade é bem mais complicada e muito mais fascinante. Nada existe isoladamente, tudo está conectado num grande sistema de engrenagens, onde não se move uma rodinha sem que se movam todas as demais.


Aí temos outro caso de nossa trágica cegueira. A ideologia industrial parte do princípio da independência tecnológica. Os engenheiros e técnicos são quase sempre unilaterais, enxergam seus objetivos imediatos e limitados e nada mais. No caso do chumbo na gasolina enxergam o funcionamento do motor, a explosão, não enxergam as lesões irreversíveis no cérebro das crianças. Quando aos pesticidas persistentes no campo, enxergam as finanças da colheita imediata. Não enxergam a destruição da fauna e flora, muito menos o posterior massacre dos oceanos. É raríssima a tecnologia que leva em conta seus efeitos adversos, diretos ou indiretos, a curto ou longo prazo.


Infelizmente há um aspecto funesto, insidioso, no preço da tecnologia moderna. Entre as vantagens e as desvantagens de uma tecnologia costuma verificar-se um defasamento no espaço e no tempo. Aquele que usufrui as vantagens em geral não é quem paga o preço. Outras vezes o preço estão tão diluído que quem usufrui aceita a parte que lhe toca porque, afinal ele está com todas as vantagens.


As vantagens financeiras da destruição de um rio são tão imediatas para os donos das fábricas, aqueles que pagam o preço pagam pouco a pouco, muitas vezes nem se dão conta do que está acontecendo. Quem morre das consequências da poluição, meses ou anos depois, no caso do câncer por exemplo, nem fica sabendo para quem está pagando o preço. Sem poluição, os mil empregados da grande fábrica perderiam logo seu emprego. O protesto seria grande. Com poluição os dez mil pescadores se retiram pouco a pouco. Nem protestam. As centenas de banhistas, inicialmente procurar outras praias, até que não há mais praia em lugar nenhum.


Na mais perfeita das democracias ainda não se inventou o voto para as gerações futuras. Mas são elas que pagarão o elevado preço de nossa falta de previdência. No caso do lixo radioativo, por exemplo, os danos realmente sérios aparecerão dentro de três ou quatro gerações.


A ecologia está nos mostrando que o atual mundo tecnológico tem preço, especialmente sua última excrescência degenerativa, a sociedade de consumo que, para satisfazer o fetiche do crescimento ilimitado até com mercados saturados, inventou a pior das suas obscenidades ambientais, a obsolescência planejada, ou seja, o envelhecimento planejado dos produtos.

Na fase inicial, infelizmente, não há muita identidade entre quem cobra e quem paga. O cobrador quase sempre tem mais força. Mas na fase final pagaremos todos, e pagaremos muito caro.


Com este fetiche do crescimento contrariamos outro princípio impecável, o dos limites do crescimento. Assim como não pode haver crescimento ilimitado a nível de indivíduo, não pode havê-lo a nível de população ou de sistemas. No alemão existe um provérbio que fiz que as árvores não podem crescer até o céu. Mas a nossa ideologia econômica e demográfica insiste em querer desrespeitar os preceitos fundamentais da natureza. Queremos crescimento e desenvolvimento a qualquer preço.


Mas um planeta finito não pode acomodar crescimento infinito. Os sistemas naturais são todos estáveis. O crescimento anormal de uma parte é sempre a curto prazo e as custas das demais. O crescimento desordenado sempre termina em catástrofe. O crescimento descontrolado da sociedade industrial se faz às custas de todo o resto da natureza, às custas da destruição metódica da ecosfera que nos dá sustento. Os que argumentam que, afinal, Malthus estava equivocado esquecem que desde então estamos vivendo na orgia do esbanjamento de nosso capital. O capital era grande mas já está chegando ao fim. No atual ritmo de esbanjamento não durará até a velhice de nossos filhos. Em breve Malthus voltará a ter razão.


Estes princípios fundamentais da ecologia:

- O da necessidade da variedade, isto é, da necessidade da sobrevivência de todas as espécies;

- O da necessidade de ciclos fechados para todos os recursos;

- O da interdependência na interação de todos os processos naturais;

- O da impossibilidade do crescimento ilimitado, pois os recursos são finitos.


Eles nos demostram que estamos no caminho errado, que precisamos encontrar outro caminho.

Voltamos, assim, ao aspecto moral da ecologia. Há os filósofos que acham que a ciência é fria, que não tem nada a ver com ética. Que a ciência não tem nada a nos oferecer na procura de valores. Outro erro fundamental da perspectiva ocidental, pois a tecnologia restabelece o elo entre ciência e ética.


Não é em vão que a tecnologia atrai os idealistas e repele os materialistas. Os genuínos ecólogos são todos humanos com sentimentos que só podem qualificar-se de religiosos, estes sentimentos diferem dos mesquinhos interesses pessoais, nacionais e antropocêntricos.

O ecólogo, o verdadeiro naturalista, distingue-se do homem tecnológico pela sua profunda reverência pela vida, sente-se tomado por ele.


Assim, o naturalista muitas vezes incompreendido ou ridicularizado pelo homem comum, este homem que defende verdadeiramente a natureza, hoje o homem mais importante. Se não adotarmos essa atitude do naturalista, não teremos futuro.


A reverencia pela vida, pela grandiosidade da criação, que foi perdida no homem, encalhado num verdadeiro utilitarismo e numa filosofia antropocêntrica. A ecologia é a ciência que está nos devolvendo essa reverência. Se a escutarmos em tempo teremos, talvez, futuro. Se não quisermos escutar, esta joia que é o planeta Terra voltara a ser o que já foi, apenas um corpo estéril, perdido entre bilhões e bilhões de outros.


*Artigo publicado no jornal Correio do Povo, 17 de dezembro de 1972., reprodução do APJL.

Texto transcrito por Sara Rocha Fritz.

Postado por Débora Nunes de Sá.

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