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Estuário do Guaíba, Reserva da Grande Metrópole do Futuro

O dia em que o homem tiver eliminado o último banhado faltará pouco para morte dos oceanos hoje seriamente ameaçados.


José Lutzenberger (1972)


Correio do Povo, 27/08/1972. Fonte: Reprodução do APJL.


Seguidamente ouvem-se pronunciamentos em favor do aterro dos banhadais das ilhas do estuário do Guaíba. De fato estão sendo drenados e secados banhados em todo o nosso Estado num ritma cada vez mais acelerado. Se esta tendência continuar, não haverá mais banhados em apenas alguns anos.


A atitude que leva à obliteração destes preciosos ecossistemas é típica das atitudes unilaterais e ecologicamente cegas que estão levando o homem moderno a demolição progressiva de todos os sistemas de suporte de vida da terra, a ponto de estarmos hoje preparando o fim da vida no astro e com isto a extinção da própria espécie humana. A poluição de que atualmente tanto se fala é apenas um aspecto da degradação cada dia mais violenta da ecosfera, do grande sistema de suporte de vida do planeta.


Em geral propõe-se ou executam-se os aterros ou drenagens de banhados, para que estas áreas possam ser urbanizadas ou utilizadas com fins agrícolas, pecuários ou florestais.


No caso do estuário do Guaíba temos o aspecto da extensão da cidade em direção das ilhas. É evidente que os proprietários das áreas têm todo interesse em ver desaparecer os banhadais, pois se tornariam ricos da noite para o dia quando puderem lotear. Mas não deve importar somente o interesse dos atuais proprietários, que em parte estão comprando com fins puramente especulativos, tendo em vista exatamente a valorização pelo aterro. Mais importante e fundamental é o interesse da comunidade. A grande concentração urbana banhada pelo Guaíba tem hoje cerca de um milhão de habitantes e prognósticos idôneos preveem entre 6 a 8 milhões para 1995. Este imenso conglomerado humano terá necessidade vital de áreas verdes e de um estuário biologicamente são. O Guaíba continuará sendo o manancial para água potável. Este aspecto já se encontra hoje algo ameaçado. Necessitaremos também de uma fauna aquática o mais intacta possível, tanto no grande sistema Guaíba-Lagoa dos Patos como no oceano porque com a população, crescerá também a demanda de alimento. Além disso, a enorme população necessitará de áreas de recreação.


Infelizmente ao leigo em biologia e ecologia em geral não ocorre que os banhados e pantanais estejam entre os ecossistemas mais importante. Apenas se lembra dos mosquitos que quer exterminar e do jacaré que considera perigoso ou acho que é um desperdício ver tanta água inaproveitada em fins econômicos imediatos.


Mas basta mencionar que cerca de 60% da produtividade dos oceanos depende direta ou indiretamente dos banhados, tanto dos banhados costeiros de água salgada ou salobra, como os da costa de Santa Catarina, como dos banhados interiores de água doce, como estes do grande sistema Guaíba-afluentes/Lagoa dos Patos-Lagoa do Casamento ou das Lagoas Mirim e Mangueira. O dia em que o homem tiver eliminado o último banhado faltará pouco para morte dos oceanos hoje seriamente ameaçados.


Temos esperança de que os mares salvarão da fome a humanidade quando a pressão demográfica se tornar insuportável. Mas, além da pesca predatória, estamos interferindo violentamente com os sistemas de suporte de vidas dos oceanos, pela poluição e pela demolição sistemática dos ecossistemas essenciais à sua produtividade.


Pra ilustrar, quero mencionar apenas o caso do nosso bagre. Não faz muitos anos a grande pescaria do bagre era nas praias da Alegria e Flórida. Hoje já está ficando raro e não aparece mais ali. Pois o bagre é um peixe de mar que, quando maduro deixa seu “habitat” em pleno oceano e vem desovar nos banhados do Guaíba e da Lagos dos Patos-Lagos do Casamento. Os filhotes retornam então ao mar. O futuro desta espécie está hoje seriamente comprometida pela poluição e pela extinção dos banhados. Muitas são as espécies com ciclos vitais parecidos e há importantes cadeias alimentares que começam nos banhados e terminam nas espécies comercialmente interessante dos rios, lagos e mares. Algumas espécies também passam parte da sua vida nos banhadais utilizando-os como invernadas.


O Guaíba recebe hoje os esgotos de um complexo urbano imenso. Não devemos esquecer que estes afluentes não são constituídos exclusivamente de matéria orgânica, suscetível de autodepuração, como muitas vezes se procura fazer crer. Basta lembrar que os esgotos de Porto Alegre e os que recebem o rio Gravataí, o Sinos, Caí, Taquarí e Jacuí contêm todos os despejos industriais de todos os conglomerados urbanos que se encontram ao longo destes cursos de água.


Entre estas indústrias de encontram as galvanoplastias, por exemplo, que despejam uma série de sais de metais pesados de conhecida perniciosidade ecológica. Encontram-se, também, certa siderurgias e metalurgias que despejam cianuretos usados no endurecimento de metais. Os cianuretos estão entre os venenos mais violentos. Temos as indústrias químicas, fábricas de baterias de chumbo e muitas outras. Os nossos esgotos recém também as águas pluviais que arrastam todas as imundices acumuladas entre as chuvas. Quanto aos efluente industriais despejados nos esgotos urbanos não se conhece nenhum levantamento para estudos qualitativos e quantitativos. Fala-se apenas em esgotos urbanos e de que serão levados ao canal do centro do rio em condutores especiais. Atitude parecida à da dona de casa que varre o lixo para baixo do tapete.


Além dos esgotos, temos as indústrias que despejam seus efluentes diretamente no rio. O Guaíba já não é mais o que era há apenas alguns anos atrás. Temos as fábricas de papel e os moradores das ilhas seriam outros tantos flagelados a reclamar custosas obras de proteção contra as enchentes. Mas não estamos na Holanda. Felizmente ainda não necessitamos conquistas terra aos cursos d’água e ao mar.


Não menos importante é o aspecto estético. Poucas grandes cidades do mundo podem orgulhar-se de tão belo contraste como é este entre os edifícios do centro e estas grandes extensões de verde quase intacto. Se todo este verde, tão belo quanto apreciado do alto dos edifícios, está hoje intacto, é porque se trata de banhadais. Não fosse assim, teríamos ali outro Bairro Anchieta a enfeiar a nossas paisagem. A cidade já teria perdido seu último atrativo paisagístico.


Esta região é realmente bela e tem valor recreativo, além de ecológico e hidrológico. Uma vez urbanizada, com ou sem planejamento, perderia seu atrativo e encanto. A flora excepcional destes banhados está ainda quase intacta, a fauna poderia ser facilmente restaurada, pelo menos parcialmente, caso estas áreas fossem conservadas intactas como reservas biológicas. Elas representam também importante ponto de apoio para as aves migratórias, hoje severamente dizimadas.


Mas a conservação como reserva biológica não impediria a instalação de alguns clubes náuticos aquáticos. A Ilha do Chico Inglês, com sua pequena enseada, seria ideal par a isto.


Nos poucos aterros que porventura se tornem necessários para estas instalações nunca deveria ser feito o assim chamado aterro sanitário. O lixo da moderna sociedade de consumo é uma massa indescritível de substâncias as mais diversas, perniciosas ou não, em mistura que químico responsável algum se atreveria fazer em laboratório. Por melhores que sejam estes aterros eles já são problemáticos em terra firme porque ninguém pode prever o movimentas das águas freáticas. Nas condições dos banhadais das ilhas, o futuro das substâncias ali depositadas seria ainda mais imprevisível a curto ou a longo prazo. Mais cedo ou mais tarde a massa esponjosa do lixo em decomposição anaeróbia, por menos que isto se veja na superfície, entregará aos cursos d’água, ou ao nível freático aquelas substâncias não-degradáveis, por exemplo o mercúrio dos dentistas e dos tubos fluorescentes.


A única forma ecologicamente aceitável de tratamento do lixo é a compostagem da matéria orgânica e reciclagem dos minerais.


As ilhas deverão ser conservadas em sua forma natural. Para isto devem ser declaradas de utilidade pública e transformadas, então, em parque municipal, estadual ou federal, como reserva biológica vital deste grande sistema fluvial e lacustre. Além de reserva biológica, constituiriam também zona de recreação, aspecto cada dia mais essencial, à medida que se hipertrofia o conglomerado urbano.


Não será o administrador que criar mais bairros Anchieta ou Alvorada quem será lembrado. Em futuro muito próximo uma população cansada de poluição e de deterioração ambiental galopante e oprimente lembrará, isto sim, o administrador de visão que soube conservar para nossos filhos algo do grandioso que a natureza preparou em longas eras de pacientes ajustes e equilíbrios e que estamos hoje destruindo cega e irremediavelmente.


*Artigo publicado no jornal Correio do Povo, 27 de agosto de 1972., reprodução do APJL.

Texto transcrito por Sara Rocha Fritz.

Postado por Débora Nunes de Sá.

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