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Por uma ética ecológica

José Lutzenberger (1971)


Foi necessário que víssemos bem de longe nossa terra para que nos déssemos conta sua fragilidade e vulnerabilidade.

Nestes últimos anos a espécie humana tem andado muito empolgada com assim chamada “conquista do espaço”. Muita gente chega a pensar inclusive, que o espaço vai resolver nossos problemas terrestres, o problema de explosão demográfica, por exemplo.

Ainda há os que creem que estamos prestes a descobrir novos espaços vitais em outros planetas, novos espaços vitais que então poderemos tratar com o mesmo desrespeito, descuido e total irresponsabilidade com que temos estado tratando este nosso pelo planeta azul.

Basta porém, tomarem em conta as verdadeiras dimensões do universo para saber que não é assim. Não temos esta chance. A solução de nossos problemas temos que encontrá-la aqui. São os próprios peritos da conquista espacial que nos estão dizendo isso: Werner von Braun, chefe da NASA, em uma entrevista recente, uma entrevista que concedeu a revista alemã “Der Spiegel”, nº 7 deste ano, ao ser perguntado se a recente viagem à Lua tinha contribuído a despertar uma certa consciência cósmica, respondeu:

“Estou firmemente convencido de que foi criada uma consciência cósmica. Pelo menos na América se deu o caso que as fotos que os astronautas trouxeram da lua causaram uma primeira impressão nos ecólogos daqui. Por que? Elas mostram pela primeira vez um quadro de nossa minúscula terra, com suas limitadas fontes de matérias-primas, sua tênue capa atmosférica e sua vulnerabilidade a abusos. O homem pode ver aí a nave espacial terra com sua tripulação de três e meio bilhões de astronautas e um sistema de suporte de vida muito fácil de envenenar. Tudo aquilo que os ecólogos vinham pregando há anos ficou subitamente bem aparente”.

Efetivamente, somos todos astronautas. Habitamos uma pequena nave espacial, perdidos na imensidão do espaço vazio, hostil à vida. Se uma joia tem valor pela sua raridade, então este nosso planeta tem um valor incomensurável. Porque, como ele, sabemos que em nosso sistema solar não há outro. Se houver algo parecido no universo, só a distância siderais, totalmente fora de nosso alcance.

Foi necessário que víssemos bem de longe nossa terra para que nos déssemos conta sua fragilidade e vulnerabilidade.

Quer dizer que deveríamos ter com o nosso astro o mesmo cuidado, o mesmo carinho que tem um astronauta com a sua limitada cápsula. Nossos recursos não são ilimitados. Não temos direito à pilhagem e à rapina, à destruição irreversível. Em nossas considerações econômicas, tecnológicas e políticas deveríamos tratar de como chegar a sistemas de equilíbrio dinâmico, não de crescimento ilimitado, de consumo e esbanjamento sempre maior de nossos recursos. Só deveríamos gastar aquilo que pode ser reposto. Uma serraria que tem à sua disposição uma área limitada de bosque não pode crescer eternamente, só poderá cortar cada ano uma quantidade de madeira correspondente ao crescimento anual naquela área, se não ela se acaba por falta de bosque.

Temos que aprender a viver dos juros de nosso capital, não podemos comer o capital. Se roermos a substância acabaremos com nosso próprio futuro tornaremos impossível a vida de nossos descendentes.

No entanto, basta abrir os olhos para ver que não estamos agindo como seria lógico para uma espécie que gosta de chamar-se a si mesma de “homo sapiens”. Nossa atual modo de proceder está demonstrando tudo menos sabedoria. Estamos agindo hoje como se fossemos a última geração, como se com a nossa morte individual acabasse tudo. Suponho que a todos aqui presentes hoje, vieram porque estão sentindo isto. Porque estão vendo que não podemos seguir no atual caminho. Porque sabem que mais vinte anos como os últimos vinte e já não sobrará muita coisa.

A destruição do ambiente natural pelo homem, hoje, já não se limita, como antes, a certas áreas localizadas e limitadas, é global, total. Está em toda a parte, e tem uma infinidade de aspectos. Cresce de maneira vertiginosa, em forma de curva exponencial, mas com taxa de crescimento também exponenciada. Se no ano passado o estrago foi de talvez dez por cento mais do que no ano anterior, pois este ano será de pelo menos quinze ou vinte por cento mais do que no ano passado. Está perfeitamente claro que esta situação não pode continuar indefinidamente. Nem no livro de matemática a curva exponencial pode ser levada até o infinito.

A vida na Terra, a incrível, a grandiosa sinfonia da evolução orgânica, este processo lento, paciente e implacável que nos deu origem, já dura uns três bilhões de anos. Três mil milhões de anos. Assim mesmo, durante todo este espaço de tempo inimaginável longo, nunca houve um cataclisma biológico como o que estamos vivendo. Até mesmo a desaparição dos grandes sáurios no fim do Cretáceo, há uns sessenta milhões de anos deve ter sido um processo mais ou menos lento e orgânico pois deu possibilidade aos sucessores dos répteis, aos mamíferos, de conquistarem os mesmos nichos. O mundo saiu daquela crise enriquecido. Mas o que estamos vendo hoje é a devastação total, inclusive dos nichos ecológicos e de “habitats” inteiros.

Neste momento estão caindo as últimas selvas do globo, estão sendo adulterados os últimos rincões da natureza ainda mais ou menos intacta. Nem o fundo do mar escapa. O pior dos terremotos não sabe causar os estragos que pode fazer o “buldozer”, o desbravamento sem plano, a poluição. Estamos extinguindo comunidades ecológicas completas, comunidades onde cada espécie é única. Estragos portanto, irreparáveis. Cada vez que apagamos uma espécie são milhões de anos de evolução irremediavelmente perdidas. Com cada espécie perdida para sempre o mundo acaba mais pobre, e nós, humanos mais sós.

A causa deste nosso desprezo pelo ambiente natural temos que procurá-la em vários fatores:

Principalmente em nossa ignorância quanto à complexidade e vulnerabilidade dos sistemas naturais. Nossa vida urbanizada, dominada por uma tecnologia artificial, nos está alienando quase por completo do mundo natural. Nós imaginamos que podemos viver totalmente isolado da natureza, sobreviveremos no mundo só de humanos e máquinas, com meia dúzia, talvez de animais e plantas domésticos.

Temos uma fé inabalável no que costumamos chamar de “progresso”. Uma fé em que progresso significa crescimento eterno. Esperamos que tudo se torne sempre maior, mais abundante, mais rápido, mais eficiente, mais diferente. Queremos sempre o máximo, e assim perdemos de visto o ótimo. Quantidade vale mais que qualidade. O homem tecnológico está tão convencido de sua força, que já não vê suas fraquezas.

Daí também nossa quase total falta de amor e consideração pelos demais seres vivos, nossos companheiros de viagem nesta nave. A ética acidental, a que hoje domina o mundo independente de ideologias políticas e religiosas, exclusivamente antropocêntrica, não reserva nenhum lugar para as demais criaturas. Albert Schweitzer, com sua grande reverência pela vida, caracterizou muito bem esta atitude quando disse:

“Assim como a dona de casa, que acaba de limpar o quarto, toma cuidado em fechar a porta, para que o cachorro não venha com um rastro de suas patas estragar a bela obra, assim os pensadores europeus tomam todas as precauções possíveis para que não venha passar algum animal dentro de sua ética”.

Se os demais seres não têm lugar em nossa ética, então não tem importância que acabemos com eles todos. Nós somos os donos da criação.

Também gostamos de imaginar que as obras do homem têm valor, as da natureza não valem nada. Quem danifica uma velha ruina ou uma obra de arte comete um sacrilégio. Mas quando, para um lucro momentâneo, ou porque simplesmente não gostamos da coisa por não saber aprecia-la, depredamos uma joia natural, que a natureza levou talvez milhões de anos para criar, será que isso não é um crime muito maior?

Nunca ocorreria a um engenheiro que concebeu uma máquina complicada, entregá-la simplesmente ao primeiro que estivesse disposto a divertir-se com ela. Pois é claro que acabaria destruindo o complexo mecanismo com ferramentas inadequadas e manejos grosseiros. Ninguém jamais entregaria um computador última geração a um engraxate que nunca ouviu falar em computadores. A máquina seria valiosa demais para tanto.

Mas é exatamente isso que estamos fazendo com nosso ambiente natural.

As decisões sobre se tal ou qual floresta deveria desaparecer, se este ou aquele banhado será drenado ou aterrado, se naquele rio vamos construir uma grande barragem, se vamos largar dezenas de milhares de toneladas diárias de lixo químico no mar, esgoto e mercúrio em nossos rios, e lagos, empregar tal ou qual inseticida sobre uma vasta região, e uma infinidade de outras agressões ao nosso ambiente, estas decisões sumamente sérias, decisões que deveriam basear-se em profundo conhecimento dos fatores ecológicos, decisões, portanto, muito importantes para o nosso próprio bem e para a continuação da vida neste astro, estas decisões, normalmente, as deixamos em mãos de quem nunca ouviu falar de ecologia, de quem não tem noção da complexidade dos problemas ambientais.

Nossa engenharia costuma procurar adaptar o ambiente à tecnologia, em vez de acomodar a tecnologia ao ambiente. Com o buldozer insultamos a paisagem para que ela se ajuste à nossa arquitetura, em vez de enquadrar harmonicamente nossa arquitetura dentro da paisagem.

Responsável desta atitude é também nossa capacidade de abstração, a atitude do especialista, que isola o seu problema e se concentra completamente em um só aspecto de uma questão. Esta atitude tem sido a base do progresso da ciência e da técnica, mas ela produz efeitos catastróficos quando aplicada ao ambiente. A biosfera é um complexo sistema de equilíbrio dentro de equilíbrios, que por sua vez fazem parte de equilíbrios ainda maiores. Para compreender nosso ambiente temos que ver a dinâmica dos sistemas naturais, temos que aprender a ver o homem como parte deste grande complexo.

Enquanto cada um só enxergar seu problema imediato, então, para obter nossos fins limitados, acabamos por causar danos ilimitados.

O especialista que introduziu o chumbo na gasolina entendia muito de motores à explosão, mas sua responsabilidade terminava no cano de escape. O técnico em saúde pública que de avião aplica o poderoso inseticida sobre todo um banhado, só está vendo aquele mosquito que ele quer liquidar, mas é totalmente cego quantas às milhares de outras espécies, muitas das quais diretamente úteis ao homem. Se a polícia agisse dessa maneira, então para liquidar meia dúzia de bandidos, teria que tratar toda uma cidade com gases venenosos. O método seria bastante eficiente contra os bandidos.

Uma vez, como técnico em produtos fitossanitários, visitei um agricultor, grande produtor de maçãs. Entre os mais de trinta tratamentos químicos ao que submetia seus pomares em cada temporada - não consigo compreender como é que o solo dele ainda não estava totalmente estéril — usava inseticidas, acaricidas, fungicidas, herbicidas, hormônios, nematicidas, desinfetantes e fumigantes, rodenticidas e repelentes, toda a gama, enfim. Entre todos estes venenos estava também usando um produto extremamente perigoso, proibido já na maioria dos países. Atrevi-me a sugerir que o substituísse por outro menos perigoso, se bem que algo mais caro. Olhou-me muito surpreso: “mas o que é que o senhor quer? Eu nunca como uma de minhas maçãs”.

O fator de mais peso, porém, na gravidade da situação atual é a explosão demográfica. O homem sempre sujava o prato do qual comia. Mas enquanto a espécie não era muito numerosa, e se mantinha em equilíbrio com seu ambiente, como todas as demais, enquanto ainda não nos tínhamos transformado em praga de gafanhotos, isso não tinha muita importância. Os estragos eram localizadas, não ultrapassavam a capacidade de regeneração da natureza.

Mas quando uma situação aumenta quantitativamente, de modo a ultrapassar várias ordens de magnitude, então acaba surgindo uma situação que é também qualitativamente nova. É o que sucedeu com a espécie humana. No nosso caso o impacto ainda é exponenciado pela concomitante explosão tecnológica. Não somente somos infinitamente mais numerosos que o homem primitivo, mas cada um de nós, quanto a impacto sobre a biosfera, vale por centenas, talvez milhares de homens da idade da pedra.

Se quisermos sair da atual crise ecológica que a humanidade trouxe sobre si mesma, e se não sairmos não teremos futuro, vamos necessitar de uma moral mais ampla, mas completa, de uma ética ecológica. Temos que aprender a ver o todo. Temos que nos livrar deste velho preconceito ocidental, da ideia de que o homem é o centro do Universo, de que toda a criação está aqui para nos servir, de que temos direito de usá-la e abusá-la sem sentido algum de responsabilidade. Temos que nos libertar da ideia de que os outros seres só tem sentido em função de sua utilidade imediata para o homem. Como queria Schweitzer, nossa ética terá que incluir toda a criação.

Precisamos de uma nova revolução copernicana que ponha o homem em seu justo lugar, que o faça descer de seu falso pedestal.

Se a natureza nos deu uma inteligência que nos possibilite este tremendo poder que agora temos sobre tudo o que vive, e sobre a totalidade de nosso ambiente, esse poder, o poder de tomar em nossas mãos a continuação da evolução ou de acabar com ela, esse poder, então, significa também uma tremenda responsabilidade.

Não estamos fora, por cima e contra natureza, estamos bem dentro. Somos um pedaço dela.

E, para terminar, quero trazer mais uma citação. Trata-se das palavras de Gene Setzer, presidente da National Audubon Society, uma antiga associação congênere da que estamos lançando hoje aqui em Porto Alegre, uma sociedade que já conta com cem milhões de membros que tem a seu crédito grandes sucessos conservacionistas. Dizia Setzer recentemente:

“Nós fomos fundados em 1905 com o fim específico de salvar uma espécie ameaçada, a garça, estava sendo exterminados pelos caçadores de plumas. Ainda é nossa intenção salvar uma espécie ameaçada. Só que hoje esta espécie ameaçada é o próprio homem”.



*Texto-base da conferência de fundação da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), em 27 de abril de 1971 e publicado no jornal Correio do Povo, 29 de agosto de 1971, p. 22.

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