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Tecnologia e poder: uma reflexão crítica

Esta sociedade industrial que nós vivemos hoje se transformou numa cultura global, uma cultura única para toda a humanidade. Mas, longe de propiciar liberação da antiga servidão, ela está nos levando a novas formas de servidão.


José Lutzenberger (1984)


Correio do Povo, 11/07/1971, p. 65. Reprodução do APJL

Prezados jovens, prezado público,

Na véspera do 3º milênio, nós vivemos hoje um desastre de civilização que não tem similar na história da humanidade. Um desastre de civilização que, por sua vez, está causando um desastre biológico que também não tem similar na história da vida. O que está acontecendo com a civilização humana não aconteceu nos últimos 10 ou 15 mil anos, durante o período que nós costumamos chamar de história da humanidade e não acontecer nos 3 a 4 milhões de anos, que é a verdade história da nossa espécie. E nunca na história da vida, nos 3,5 a talvez 4 bilhões de anos de sinfonia da evolução orgânica houve nada semelhante com isso que hoje nós vemos em torno de nós. Basta abrir os nossos olhos e olhar as nossas paisagens, ver o que está acontecendo com nossos mares, arroios, com os lagos, com nossas florestas e todos os demais ecossistemas.


Nunca na história da vida houve desastre semelhante ao que hoje se verifica neste planeta. Mas, não vou entrar nos detalhes dos aspectos físicos e sociais desse desastre porque são conhecidos de todos. Toda a pessoa que abre os olhos, todo aquele que procura se manter informado, que lê jornal, que dialoga com o mundo sabe ao que eu me refiro. O que eu quero levantar aqui, nesta palestra, hoje, são alguns dos aspectos fundamentais das verdadeiras causas deste desastre, ou seja, da patologia cultural que está na base da calamidade que nós vivemos hoje.


Predomina ainda a crença de que a crise ecológica seja apenas um pequeno ou uma soma de pequenos descarrilamentos mais ou menos acidentais ou imprevidentes como as tecnologias que hoje aplicamos e que, portanto, seriam facilmente evitáveis com um pouco mais de disciplina, e que além disso haveria uma certa medida de devastação criminosa e que com um pouco mais de legislação e mais polícia seria facilmente possível contornar.


Portanto, a sabedoria convencional põe a culpa do que está acontecendo com aquele número reduzido de pessoas consideradas criminosas. Mas, na realidade, a coisa não é assim. O que está acontecendo não é culpa de gente ruim. O que está acontecendo é consequência das ações de gente boa, de gente muito bem intencionada. Todos nós somos culpados do que está acontecendo. O que está levando a humanidade ao desastre não são seus insucessos; é justamente o seu sucesso, é porque as coisas estão indo como queremos que andem que nós estamos arrasando o planeta, estamos caminhando para o precipício. Se nós queremos realmente compreender o que está acontecendo, nós precisamos analisar as atitudes básicas da atual civilização, ou seja, da sociedade industrial que caracteriza este século, esta cultura tecnológica em que vivemos hoje e que domina todo o planeta. Praticamente sem exceção, aqueles últimos redutos de culturas ainda diferentes, ainda autênticas, genuínas estão sendo pouco a pouco liquidadas e todo mundo está entrando na sociedade industrial, sem diferença entre o lado que se diz capitalista e o lado que se alardeia comunista ou socialista. Esta sociedade industrial que nós vivemos hoje se transformou numa cultura global, uma cultura única para toda a humanidade. Mas, longe de propiciar liberação da antiga servidão, ela está nos levando a novas formas de servidão. Nós estamos vivendo hoje uma nova forma de feudalismo, o que eu chamaria, por falta de expressão consagrada, o feudalismo tecnocrático, um feudalismo muito mais pernicioso, muitos mais insidioso e muito mais mentiroso que as antigas formas de feudalismo. Mudaram as aparências, mudaram os nomes e mudaram também os instrumentos, mas, fundamentalmente, temos novamente uma forma de feudalismo. Já não se fala mais em reis, imperadores, xás ou tzares, (aliás um dos últimos xás foi mandado embora agora), nem em príncipes, duques, marqueses, condes. Esses nomes, essas designações, todas desapareceram ou estão a ponto de desaparecerem definitivamente. Mas nós temos novos senhores feudais. Os novos senhores feudais hoje são os governantes e os tecnocratas, ou seja os burocratas e os tecnocratas. No antigo feudalismo, os governantes, em última instância, obedeciam à Igreja, porque a Igreja tinha o poder de excomunhão. Hoje nós temos também uma Igreja. A Tecnocracia é a nossa moderna Igreja. Ela tem a última palavra, porque ela tem condições de excomungar o burocrata, ou sejam o governante que não entrar na linha. Nós pensamos ainda que somos uma sociedade secular, mas isso não é verdade. Somos uma sociedade tão religiosa como eram as sociedades antigas. Somente que a nossa religião hoje é outra e ela não é reconhecida como tal. Esta nova servidão as novas estruturas de poder se tornou possível à medida que a sociedade industrial, que se desenvolveu neste último século e meio ou 2 séculos, deu origem a um desastre cultura também sem precedentes. Eu acho que nunca houve na história da humanidade um desastre cultural como este que nós estamos vivendo agora e a coisa é tanto pior quanto não nos damos conta sequer da existência desse desastre.


Nós somos, como eu disse antes, uma cultura tecnológica. O que mais caracteriza a nossa cultura atual é a tecnologia. A nossa sociedade moderna é uma sociedade tecnológica. Basta ver o confronto entre a nossa sociedade moderna e o índio. Ele não tem nem condições de se enfrentar conosco. A nossa força tecnológica é tal que nós simplesmente o liquidamos. Nem pensamos em direitos mais. A sociedade moderna é uma sociedade tecnológica, uma cultura tecnológica. Mas, essa cultura tecnológica contém uma contradição de consequências extremamente funestas. Uma contradição da qual a grande maioria das pessoas simplesmente não se dá conta.


Nas culturas anteriores, as tecnologias, as práticas, os métodos por aquelas culturas empregadas eram transparentes, eram compreensíveis para toda a população. O índio, por exemplo, mesmo a mulher indígena que nunca agarrava um arco e flecha (mesmo por tabu não podia agarrar) sabia perfeitamente como funcionava o arco e a flecha, e todo mundo dentro daquela cultura de idade da pedra entendia todos os instrumentos que aquela cultura usava e aplicava. Na Idade Média, mesmo que jamais manejasse um moinho de vento ou um moinho d’água entendia o funcionamento daquilo. No entanto hoje temos uma sociedade, uma cultura tecnológica onde a sociedade não entende esta tecnologia. Se eu pedir que neste auditório levantem a mão as pessoas que têm condição de me explicar, digamos, o funcionamentos de um refrigerador, eu não sei se 0,5% levantaria a mão. Quantas pessoas hoje, neste mundo, em todo o mundo, constantemente andam de automóvel, sabem explicar inteligentemente o funcionamento do moto à explosão. Qual é a proporção da população que sabe me explicar o funcionamento do televisor? De computadores já não vamos nem falar, de uma coisa tão simples quanto um termostato. É verdade que nós temos muitos técnicos e os técnicos, em geral, compreendem aquelas coisas que eles manejam, mas a grande maioria dos técnicos fora de sua especialidade, não entende nada.


Se eu visitar uma usina nuclear com um engenheiro nuclear, ele vai poder me explicar meia dúzia de coisas. O resto, diante do resto das técnicas que ali aparecem nas instalações, ele é tão ignorante quanto eu. Os nossos técnicos, em geral, fora da sua especialidade são completamente imbecis. E, aliás, as nossas universidades estão programadas a fazer exatamente isso – peritos imbecis. Gente que domina muito bem o manejo dos botões da máquina para a qual eles foram treinados, mas que fora daquilo são completamente boçais, fora daquilo não entendem absolutamente nada. As universidades há muito tempo que deixaram de ser universidades e se transformaram em simples escolas técnicas e escolas técnicas de baixíssimo gabarito. O pessoal que sai da universidade tem que aprender a fazer aquilo para o que ele supostamente foi treinado.


Então nós nos encontramos numa contradição fundamental e extremamente perniciosa. Isto é um desastre cultural como nunca houve na história da humanidade. Todas as culturas anteriores tinham tecnologias que eram compreendidas por toda a sociedade. Hoje nós temos uma sociedade que se diz participando da cultura tecnológica e a sociedade não entende a tecnologia. Isto tem consequências extremamente graves. Nas culturas anteriores onde toda a população entendia todas as técnicas empregadas, todo mundo sabia distinguir entre arado e forca. Hoje essa distinção é invisível para o público. O público não se dá conta mais do que é instrumento para real satisfação de genuínas necessidades humanas e o que é instrumento de dominação. Nós estamos hoje numa nova forma de servidão, de dominação, onde o dominado não mais nota que ele está sento dominado. E o que é pior, ele até bate palmas para o seu dominador. Este tipo de coisa ainda não houve na história da humanidade.


O antigo escravo sabia que era escravo e o escravagista não negava que era escravagista. Pelo menos esta honestidade havia. Hoje, muitas vezes, o próprio dominador não sabe que está dominando e o escravo não sabe que está sendo escravizado, e aceita a ideologia do dominador. E justamente esta ignorância que nós vivemos hoje, o público que não entende mais a tecnologia com a qual ele convive, levou a que tivesse aceitação quase generalizada em todas as camadas da sociedade, a ideologia de sustentação do que eu chamaria a Igreja Tecnocrática. Essa ideologia é aceita por todo mundo, até pelo mais humilde dos dominados. O operário que é o mais dominado dentro desse esquema, também aceita a ideologia de sustentação das estruturas de poder porque essa ideologia nos é apresentada em nome de uma coisa que todo mundo aceita cegamente também – o tal do progresso que jamais é definido. Essa ideologia de sustentação do moderno feudalismo tecnocrático tem toda uma dogmática própria, mas ela se distingue de antigas ideologias também por um aspecto que eu diria novamente extremamente funesto.


As ideologias tradicionais como o catolicismo, protestantismo, budismo, islamismo ou as religiões mais modernas como o comunismo, socialismo, anarquismo, estas ideologias pelo menos eram explícitas, eram ideologias que nos eram abertamente apresentadas. Seus enunciados eram claros. Suas definições, seus axiomas eram clara e abertamente enunciados. Os dogmas da igreja católica nos são apresentados abertamente. Basta abrir o catecismo. Lá estão eles ao alcance de todo mundo. Não há nenhuma mistificação em cima deles. Agora os dogmas da igreja tecnocrática (eu vou continuar usando esta expressão) ou do feudalismo tecnocrático, são dogmas que jamais nos são apresentados abertamente. Mas eles estão implícitos em tudo o que se diz, em tudo o que se faz. Em todas as decisões políticas nas sociedades modernas.


E faço questão de frisar mais uma vez que não há diferença nenhuma entre os países que se dizem capitalistas ou socialistas.


De ambos os lados, a dogmática é exatamente a mesma. Em ambos os casos, os dogmas não nos são apresentados explicitamente, mas eles estão implícitos em tudo que se faz, em todas as decisões políticas. Todas as decisões desenvolvimentistas dos nossos governos, de ambos os lados, se apoiam na mesma dogmática. Mas esses dogmas simplesmente não são abertamente enunciados. Mas eles são aceitos por todo mundo, sem discussão. Isso nos leva a uma situação também única na história da humanidade, porque uma vez que os dogmas não são abertamente enunciados, eles também não são reconhecidos por ninguém. Ninguém se dá conta desses dogmas. Eles são aceitos quase que como um fato da vida, como se fizessem parte da beleza das coisas. Então, todo mundo tem a impressão de que não existe uma religião oficial, de que nós somos um estado secular, de que seguem de pé as velhas religiões e culturas, de que seguem de pé a diversidade cultural e religião tradicional, quando, na realidade, existe uma só religião que todo mundo segue. Mas essa não é explícita. Por isso, a tecnocracia onde ela está muito bem estabelecida, como nos países capitalistas, ela não precisa nem sequer usar de repressão contra hereges porque não existem hereges. Todo mundo aceita a ideologia convencional, porque todo mundo a considera um fato da vida, sem sequer discuti-la.


Os dogmas não são abertamente apresentados. Mas se trata, sim, de uma religião, de uma religião super fanática, de um fanatismo nunca visto antes. Uma religião dominadora e envolvente que tem um elan missionário como nunca houve, que tem uma força de convicção, um pode de dissuasão irresistível. Eu vou apresentar alguns dos dogmas. Não são todos, que o tempo não basta para isso, mas vou apresentar alguns dos dogmas mais fundamentais da moderna religião tecnocrática:


1º) (Essa dogma, eu vou enuncia-lo à minha maneira. Agora, provavelmente vocês nunca o viram enunciado assim, mas à medida que eu mencionar, vocês vão ver que de fato é isso mesmo). O 1º dogma é o que eu chamaria o dogma da inevitabilidade científica da tecnologia moderna. A tecnologia moderna nos é apresentada como se fosse um resultado inevitável da ciência, como se ciência fizesse existente isso, como se o simples fato de nós termos ciência nos levará automaticamente a esse tipo de tecnologia. Aliás, é muito comum, aliás é quase geral, hoje, confundir-se ciência com tecnologia, ou mesmo considera-las, quando não sinônimos, pelo menos praticamente complemento uns dos outros. No entanto, tecnologia e ciência são duas coisas fundamentalmente diferentes. Mas eu tenho verificado que mesmo nas cabeças de muitos cientistas hoje predomina a ideia de que a ciência e tecnologia são uma e a mesma coisa. No entanto, elas partem de posicionamentos éticos fundamentalmente diferentes.


O verdadeiro cientista é um homem contemplativo, é um homem que quer compreender o universo, é um homem que vibra com a divina beleza do universo, é um homem que, em 1º lugar [ilegível] um ato de fé. Um ato de fé na racionalidade do universo. Ele acredita que o universo é racional, que no universo só existem leis sem exceções, um homem que, portanto, em reverência, em humildade, diante dessa magnificência, procura contemplar a beleza do universo. O cientista, portanto, é um homem humilde, e se vocês estudarem a vida dos grandes cientistas, por exemplo, Albert Einstein, Charles Darwin, Julian Huxley e mesmo Natan Rustle e outros, você vão ver que era homens extremamente humildades, modestos. Agora, o técnico, o tecnocrata, parte de uma atitude fundamentalmente diferente. O tecnocrata quer impor a sua vontade, ele quer fazer coisas, e por isso ele serve dos conhecimentos da ciência, está certo, mas ele, no fundo, está prostituindo a ciência, porque ele está impondo a sua vontade. Enquanto que o cientista é um homem que se extasia diante da beleza do universos, o tecnocrata quer mudar as coisas. Diante da beleza do meandro de um rio, por exemplo, o cientista se extasia. Ele quer compreender aquela coisa, aquela beleza, aquela elegância. Quer saber o porquê daquele meandro.


O tecnocracta não, o tecnocrata já está vendo a draga, está vendo como vai retificar aquele meandro, para que o rio corra mais ligeiro e movimente mais rápido as suas turbinas, ou seja lá o que for. O geólogo, diante de uma montanha se extasia diante daquela maravilha, diante do registro geológico que ele verifica ali, onde ele pode ver o passado de milhões ou bilhões de anos. Para ele, aquilo é um exercício intelectual fabuloso. O mineiro que só está vendo minério, só está vendo o trator para arrancar aquele negócio da maneira mais rápida possível, como estão fazendo hoje atrás de Belo Horizonte, que o horizonte belo já perdeu há muito tempo. São, portanto, atitudes fundamentalmente diferentes e nós temos que compreender essa diferença. Enquanto nós aceitamos o dogma de que ciência e tecnologia é a mesma coisa, nós vamos aceitar os posicionamentos do tecnocrata, que são posicionamentos, não de reverência pelo mundo em que vivemos, mas são posicionamentos de poder, de imposição de vontade, duas coisas fundamentalmente diferentes.


2º) O segundo dogma da religião tecnocrática eu chamaria o dogma da desejabilidade irrestrita da tecnologia. A tecnologia nos é apresentada como se ela fosse sempre e sem exceção, desejável. Tecnologia, dentro desse enfoque, é sempre bom. Então não há tecnologia que chegue. Se eu posso fazer à máquina uma coisa que hoje estou fazendo à mão, então isso é progresso. Aliás, a própria definição de progresso, que nunca nos é dada explicitamente, mas na cabeça de todo mundo é isso: é mais progressista o país que tem mais tecnologia. Nós nos consideramos até com um tremendo complexo de inferioridade diante dos europeus, digamos, dos alemães e dos americanos, porque nós temos menos tecnologia do que eles, então temos que fazer um esforço tremendo para chegar aonde eles estão. E o americano não quer parar aonde está. Ele já quer fazer estações de satélites para 100 mil pessoas, custando 100 bilhões de dólares para captar energia solar lá em cima e mandar para cá. Já estamos agora construindo usinas nucleares da 1º geração, queremos fazer usinas nucleares da 2º geração, depois queremos fazer usinas de fusão, e assim por diante, e não há tecnologia que chegue, tem que ser sempre mais sofisticada e sempre mais gigante, o que se quer é sempre mais megatecnologia.


Então, usinar nuclear dentro desse enfoque é uma coisa super progressista. Uma rodinha d’água, um moinho d’água ou um aparelho de tração animal para agricultura, isso é considerado o último dos atrasos. Na cabeça da pessoa média hoje, com exceção daqueles poucos dissidentes, os hippies, os ecólogos e mais alguns, na cabeça de 90 e poucos por centro da população moderna, tecnologia é sempre, e por definição, desejável. Portanto, não há tecnologia que chegue. Por isso nós achamos hoje que a Amazônia não pode ficar como está, de jeito nenhum, que aquilo, imagine, a natureza está intacta, como é que nós vamos poder deixar a natureza sem trato, sem canais, sem barragens, sem fábricas, sem poluição? Então, esses dois dogmas, o primeiro o da inevitabilidade científica da tecnologia, o segundo o da desejabilidade irrestrita da tecnologia, e o terceiro, esse eu ainda acho mais pernicioso: o dogma da neutralidade ética da tecnologia. A tecnologia nos é sempre apresentada como se ela nada, absolutamente nada, tivesse a ver com a moral. A tecnologia é fria, dentro desse conceito. Um dos ataques mais frequentes a nós, ecólogos, por parte dos tecnocratas, é: “mas vocês estão usando muito a emoção, que negócio é esse? Vocês tem que discutir friamente, isso aqui são assuntos técnicos, não emotivos”. Porque eles querem nos impor o dogma de que tecnologia nada tem a ver com ética. Desde quando tecnologia nada tem a ver com ética? No momento em que nós nos damos conta de que técnica e ciência são coisas bem diferentes, que técnica significa execução de alvos, então nós sabemos que tecnologia é sempre uma atitude ética, pode ser boa ou ruim, não importa, mas tem a ver com ética. Jamais técnica é uma coisa fria, mecânica, que nada tem a ver com política. E agora vocês podem ver o maior desastre da nossa sociedade moderna: nós somos uma sociedade tecnológica, e em nenhum de nossos grêmios políticos se discute tecnologia, e nos raros casos que alguém discute tecnologia, é desclassificado como emotivo, como radical, como saudosista, como fora da realidade. Porque nós todo estamos aceitando o dogma da neutralidade ética da tecnologia, quando tecnologia, na realidade, de neutro não tem nada. Ela é sempre instrumento de dominação. E se isso não é política eu não sei o que é política.


Portanto, nós deveríamos estas hoje discutindo tecnologia, quando hoje atacamos as usinas nucleares. Por exemplo, a tecnologia que eu chamaria talvez hoje o último dos paroxismas desse despotismo tecnocrático que nós estamos vivendo hoje, uma tecnologia que nos leva a novas dimensões de perigos, perigos antes nunca vistos e antes nunca concebidos sequer, nós somos simplesmente desqualificado: “Não, mas vocês estão sendo emotivos, estão sendo contra o progresso, vocês tem que ver essa coisa em termos técnicos, não tem termos emotivos”. Ora, quem constrói usinas nucleares, está mexendo com a sociedade toda, está impondo a sua vontade, inclusive a gerações que vão nascer daqui a milênios, gente que hoje não tem o poder de voto. Ele está impondo a sua vontade, está causando estragos indescritíveis ainda daqui a centenas de milhares de anos. E, no entanto, ele se atreve a nos dizer que nós deveríamos ser estritamente técnicos. Ora, em termos estritamente técnicos eu posso destruir o planeta todo. Portanto, nós precisamos, e isso é fundamental, nós precisamos uma crítica política da tecnologia, e isso não está acontecendo justamente por causa dessa incrível ignorância técnica que hoje caracteriza nossa sociedade. Os políticos dos nossos parlamentos em geral não têm nem condições de compreender o que está acontecendo.


Ainda recentemente, não faz 2 semanas ou três, eu estive no Senado Federal, assisti ao depoimento de dois grandes cientistas brasileiros, o prof. Pingheli Rosa, do Rio e o Prof. Cerqueira Leite de São Paulo, de Campinas, num depoimento sobre os perigos da energia nuclear, com apenas 4 senadores presentes. De cento e poucos senadores, se não me engano, tinha 4: 2 na mesa, e um da ARENA de uma lado, e um do MDB do outro lado. Quando se estava discutindo um dos assuntos de maior importância da atualidade, 4 senadores presentes, e esses 4, a maioria do tempo, não estavam prestando atenção. Portanto, se nós aceitamos esses 3 dogmas que eu acabei de enunciar, (eu vou repeti-los mais uma vez_, o dogma da inevitabilidade científica da tecnologia moderna, o dogma da desejabilidade irrestrita da tecnologia e o dogma da neutralidade da tecnologia, então nós temos como coronário de que a função mais sagrada dos governos é criar condições para o pleno e irrestrito desenvolvimento da tecnologia. E é exatamente o que vocês estão vendo. Todos os governos do mundo, capitalistas ou comunistas, não tem diferença, consideram o seu mais sagrado dever manter e propiciar condições para o desenvolvimento desenfreado da tecnologia. E todos aqueles que são contra a tecnologia são considerados hereges. Claro que não se usa essa terminologia que eu estou usando hoje, mas é exatamente isso.


Se vocês analisarem todas as decisões dos nossos políticos, vocês estão vendo que eles se sentem responsáveis pela criação de um clima favorável ao desenvolvimento desimpedido da tecnologia. Os políticos assim e transformaram em simples servos da tecnocracia. Quem manda são realmente os tecnocratas e o político se transformou em simples capanga deles. Talvez agora vocês comecem a compreender o porquê da agressividade, tanto ambiental como social, da moderna tecnologia. Uma vez que ela não é outra coisa senão instrumento de uma classe dominante e eu faço mais uma vez questão de frisar que não estou distinguindo entre comunismo e capitalismo. Para mim é exatamente a mesma coisa. Do lado de lá, apenas, nós temos uma concentração ainda muito maior de poder. Lá nós temos uma firma só. Do lado de cá tempos muitos bandidos. Lá tem um só. Se nós temos muito mais liberdade de ação, mais liberdade de informação do lado de cá é porque sempre é melhor a gente ser governado por muitos bandidos do que por um Jesus Cristo. Porque onde há muito bandido sobra muita fresta para a gente se meter. Eu posso jogar um bandido contra o outro. O bandido A quer me matar, mas o bandido B não gosta do bandido A, então ele vai me proteger, não porque ele gosta de mim, mas porque ele não gosta do bandido A. Enfim, se nós temos um poucos mais de liberdade de ação, liberdade de informação do lado de cá, é apenas porque do lado de cá existem maior divisão do poder, o poder não é tão concentrado.


A comparação que se poderia fazer em termos, agora voltando atrás, no antigo feudalismo, a diferença que havia entre protestantismo e catolicismo. O protestantismo era mais descentralizado. Cada pastor tinha ele mesmo mais possibilidade de interpretar a Bíblia. No catolicismo foi necessária mais repressão do que no protestantismo. Pelo menos em tese. No momento em que nós compreendermos estas estruturas nós vamos compreender o porquê da devastação que hoje se verifica, tanto ambiental como social. E no fundo é a mesma coisa. O tecnocrata também sempre nos ataca, a nós, ecólogos, de estarmos defendendo plantinhas e bichinhos e esquecermos o que chama a poluição da pobreza. Acontece que essa poluição da pobreza quem é que a faz? É o tecnocrata que está fazendo isso porque sempre que eu concentro poder, que eu concentro capital, que eu concentro recursos de um lado, eu estou empobrecendo outro. Eu vou citar mais alguns dogmas dessa nova e feroz religião. O que eu chamaria o dogma nº 4, é o que eu chamaria o dogma do fetiche do dinheiro. Nós estamos hoje numa situação em que tudo é medido em dinheiro e tudo se faz pelo dinheiro. Nós não estamos fazendo coisas. Ninguém está mais fazendo coisas. Nós estamos fazendo dinheiro. Quem está fazendo coisas, conhece limites, conhece limites muito rígidos. Eu não posso querer comer 5 almoçar ao mesmo tempo. Isso não existe, eu vou ficar doente. Eu posso querer comer um almoço melhor, mas querer comer 5 ou 10 almoços ao mesmo tempo não adianta. Eu não posso querer morar em 50 casas ao mesmo tempo. Só posso dormir numa por vez. Então quem persegue coisas materiais, o materialista no verdadeiro sentido da palavra conhece limites. Ele vai querer coisas melhores, mas não vai querer um número infinito de coisas, porque isso não existe, nem no livro de matemática. Agora, quem persegue abstrações, (e o dinheiro é uma abstração, o dinheiro não é uma coisa, ele é um contrato social), quem persegue abstrações não conhece limites, porque nos números eu posso adicionar sempre mais.


Então acontecem coisas como, por exemplo, aquela daquele super bilionário americano, para citar apenas um exemplo extremo, o Sr. Daniel Ludwig, um homem que tem uma fortuna que se conta em bilhões de dólares, que tem oitenta e poucos anos de idade, parece que nem herdeiros tem, vive uma vida muito ascética. No entanto, ele está derrubando centenas de milhares de hectares de floresta na Amazônia para fazer mais dinheiro. Ele não pode contar o dinheiro que ele tem. Então vejam, nós nos consideramos hoje, (é crença também generalizada) que nós somos uma sociedade materialista. Essa é outra grande mentira. Se nós fôssemos uma sociedade materialista, jamais nós estaríamos destruindo uma maravilha natural como é a floresta Amazônica, uma das coisas mais preciosas que a natureza levou centenas de milhões de anos para fazer. Jamais faríamos esses estragos paisagísticos que eu vejo aqui em Petrópolis. Jamais os arroios seriam essas cloacas que nós temos. Se nós fossemos uma sociedade materialista há muito tempo que o nosso mundo seria um mundo muito bela, porque nós gostaríamos de coisas.


Mas hoje ninguém mais está preocupado com coisas, nós estamos preocupados com uma abstração, com o dinheiro. Em nome do dinheiro nós destruímos qualquer coisa. O tecnocrata que está destruindo a floresta amazônica para botar boi, ele está fazendo uma das coisas mais imbecis que já foram feitas nesse planeta. Aquele boi naquela terra que sobra depois da derrubada daquela floresta produz ridículos, escutem-me, ridículos 25 a 30 kg de carne por hectare e por ano. Só aquela castanheira que ele derrubou fazia 500 kg de castanha que é muito mais valiosa do que aquelas 30 kg de carne de boi. E ele derruba 10 ou 20 castanheiras por hectare. Mas, como a castanheira não dava dinheiro para ele e boi dá, ele derruba a floresta e bota boi. Porque hoje o Nordeste é a região mais triste, mais atrasada, mais pobre, mais faminta do Brasil? Porque no Nordeste, cada metro quadrado de solo fértil está dedicado à produção de dinheiro, através da cana, um dinheiro que nem sequer é gasto naquela região. A maioria daqueles senhores feudais gasta esse dinheiro no Rio, em São Paulo, nos Estados Unidos ou na Europa. No entanto, se aqueles solos, os solos férteis do Nordeste fossem dedicados à produção de alimentos, o Nordeste poderia estar muito bem alimentado e possivelmente poderia ter 3 ou 4 vezes a população que tem, e bem alimentada. E teria mais uma coisa que hoje não tem: teria uma belíssima e sã estrutura social. Mas todos os solos férteis, cada m2 de solo fértil no Nordeste está dedicado à produção de dinheiro, não à produção de coisas.


Esse fetiche do dinheiro tem nos levado a toda uma série de desastres e causa sempre mais desastres. Em nome do dinheiro nós destruímos qualquer coisa e ainda achamos que estamos fazendo uma coisa muito boa. Não faz muito tempo, na luta que nós fizemos contra um grande projeto tecnocrático na costa de Santa Catarina, mais especificamente em Laguna, onde se pretendia destruir pela dessalinização de 3 grandes lagoas um dos maiores refúgios de camarão da nossa costa. Quando nós estávamos na Assembleia Estadual de Santa Catarina discutindo o desastre que seria a destruição desse viveiro de camarões, um deputado que representava umas 50 mil pessoas, pescadores e os familiares dos pescadores daquela região, levantou a questão do desastre que seria a dessalinização das lagoas porque se acabaria o camarão e 50 mil pessoas ficariam mal de vida. Aí um dos tecnocratas presentes disse: “Mas o que é que vocês querem? Nós vamos dar emprego pra todo mundo, vocês vão ter muito dinheiro. Vão comprar camarão”. Como se o dia que não tiver mais camarão, com um milhão de dólares não vou comprar um camarão. Mas a crença geral parece ser que o dinheiro faz [ilegível] não importa o destruir as coisas mais preciosas da natureza. Se houver dinheiro, o dinheiro vai me dar as condições de recuperar tudo. Ora, é dentro dessa ilusão que nós estamos arrasando também esse planeta. Quem está poluindo um rio em nome do dinheiro, talvez para ele pessoalmente seja vantajoso. Mas a sociedade jamais recobrará aquele rio e não há dinheiro que chegue para fazê-lo.


O fetiche do dinheiro levou também a outro desastre. Os economistas, querendo ser científicos e existe uma pretensão também absurda na ciência moderna. A pretensão de que uma ciência tem tanto mais “status” quanto mais ela lida com números, quanto mais matemática ela é. Então o matemático se considera o rei da ciência, depois vem o físico, o astrônomo, cosmógrafo, o químico, depois vai descendo, o biólogo já está lá no fundo do barco, coitado, usa muito pouca matemática, portanto o “status” dele é muito baixo, depois o sociólogo, o politólogo então nem é bom falar, coitado, nem sabe o que é matemática. Os economistas querendo ser científicos inventaram de usar muito número, mas se esquecem que economia não é ciência, economia é disciplina social, portanto tem a ver com ética. E em ética não há números. Mas a obsessão dos números levou as ciências econômicas a lidar exclusivamente em termos de dinheiro. Isso tem como consequência que tudo aquilo que não é monetariamente quantificável....


A insistência no dinheiro em nosso pensamento econômico levou a uma consequência muito funesta. Tudo aquilo que não é monetariamente quantificável, tudo o que não pode ser expresso em termos de moeda, de dólares, de marcos, de iens, de cruzeiros e assim por diante, simplesmente não entra em nossas cogitações econômicas. Vocês já ouviram um economicista falar de amor, de beleza, de amizade, de harmonia, de saúde, de justiça. Ora, as coisas mais importantes da vida humana simplesmente foram excluídas do nosso pensamento econômico, por causa desse fetiche absurdo, o fetiche do dinheiro. As coisas realmente importantes não são discutidas, são consideradas secundárias. O nosso pensamento político não leva em conta esses fatos, porque nós medimos tudo em termos de dinheiro apenas. Uma máquina é considerada mais eficiente se ela movimento mais dinheiro, se ela deixa mais lucro. Ela pode causar danos os mais violentos da sociedade, mas se ela movimenta mais dinheiro, se dá mais lucro para aquele que movimenta aquela máquina, esta máquina é considerada mais eficiente. Dentro desse pensamento, por exemplo, cerveja em lata é considerada progresso. É mais fácil movimentá-la em lata, não tem que devolver a lata, o tecnocrata ganha mais dinheiro, agora os estragos que ele está causando, os recursos que ele está botando fora irreversivelmente, aquele aço, aquele alumínio, aquele estanho, e a poluição que ele está causando, isso não interessa a ele. Ele simplesmente não está preocupado porque, à medida da eficiência de uma máquina, de um método, de um processo é a eficiência meramente monetária.


Nós consideramos progresso aquilo que movimento mais dinheiro. E notem bem, os países comunistas fazem exatamente a mesma coisa. Eles também medem a eficiência de uma máquina na eficiência monetária. E na eliminação de mão-de-obra. Uma máquina é considerada mais eficiente se precisa de menos gente. Agora vejam bem o cinismo do tecnocrata. O tecnocrata quando tem qualquer problema sempre alega que ele está defendendo o emprego. Eu estou para ver uma mentira pior do que essa. Eu quero ver o tecnocrata que, podendo trocar uma máquina que precisa de 5 anos/homens por uma que precisa de um só, não a troca imediatamente no momento em que ele tiver condições de fazê-lo. E esse é o mesmo homem que diz que ele está defendendo o emprego. Ora, todos esses avanços tecnológicos, avanços entre aspas que nós hoje estamos testemunhando e promovendo, são sempre em termos de maior movimentação de máquina, de dinheiro e de menor uso de mão-de-obra.


Então acontecem coisas como, eu vou explicar para vocês uma técnica muito simples que surgiu lá no Rio Grande do Sul há uns dois ou 3 anos atrás. As nossas fábricas de conserva de frutas, em Pelotas, até recentemente usavam centenas de pessoas descascando frutas com faquinha. Então numa fábrica daquelas serviam centenas de mulheres descascando frutas à mão. Até que alguém inventou uma coisa tremendamente progressista. Hoje o pêssego é descascado num banho de soda cáustica. Ele vem por uma fita, cai no banho, o segredo está no tempo que ele fica. Não pode deixar muito tempo porque aí só sobra o caroço. E sai descascado do outro lado. Vejam, dentro dos atuais conceitos de progresso, isso é progresso, porque agora o tecnocrata ganha mais dinheiro e economiza mais mão-de-obra. Centenas de pessoas que necessitavam desesperadamente daquele trabalho, ficaram desempregadas. Mas, o dono da fábrica ganha mais dinheiro. Portanto, dentro do conceito convencional, isto é progresso. Mas será mesmo progresso? A Sociedade está pior agora do que antes. Temos mais problema social e também um tremendo problema ambiental. Aquele arroio que até aquele momento estava limpo, está agora com tremenda carga de matéria orgânica e de soda cáustica. Onde antes havia água e peixe pulando, agora só morte e fedor. Mas dentro dos atuais conceitos de progresso, houve progresso. Nós medimos hoje progresso.


Vou terminar com mais um aspecto fundamental. Outro dogma dessa, eu diria agora, obscena sociedade industrial que nós vivemos hoje. Todos os países do mundo, capitalistas e comunistas, medem hoje progresso em termos de PNB, ou seja Produto Nacional Bruto. Que é o PNB? O PNB é uma simples medida de fluxo de dinheiro. Os americanos tem um PNB que, se não me engano, está por volta de 8 mil dólares per capita por ano. Quer dizer, para cada cidadão americano a economia americana movimenta por ano 8 mil dólares. Nós, pobres diabos, estamos um pouco acima de mil e duzentos. Portanto, nós temos que fazer um esforço tremendo para chegar lá onde estão os americanos. Temos que construir usinas nucleares, Itaipús, Itacuruis e outras loucuras e indecências para chegarmos também a um PNB de 8 mil dólares per capita. Mas eles não querem ficar nos 8 mil. Querem chegar no fim do século a 15 mil, 20 mil, depois a 100 mil e assim por diante, mesmo descontada a inflação porque o PNB veio a ser sinônimo ou medida de progresso. Mas vejam que medida estranha. Enquanto nós aceitarmos o PNB que apenas mede fluxo de dinheiro, como medida de progresso, então o sujeito debochado, o cara que toma banho em champanhe, que faz tremendas orgias todos os dias, que bota fora 20 carros por ano, que incendeia sua casa para comprar nova, esse cara é tremendamente interessante para a economia do país, ele está movimentando a economia do país, ele está fazendo o PNB.


Por outro lado, o sujeito de inclinações intelectuais, que passa o seu tempo estudando, gozando música, contemplando a beleza da natureza, cultivando o relacionamento social e amizades humanas, mas que gasta uma garrafa de uísque cada 3 anos, não tem televisor dentro de casa, esse cara não presta para a economia moderna. Ele pode ser o maior gênio, o maior artista, ele é um sujeito pernicioso dentro do atual conceito de progresso. Vou abordar apenas um aspecto mais: Agora sim eu quero tocar um aspecto do pensamento econômico moderno que tem apenas uma diferença entre o lado que se diz capitalista e o lado que se alardeia comunista: o mecanismo do mercado. Do lado capitalista se alardeia as virtudes do mercado, mas é bem verdade que isso é pura hipocrisia, porque o capitalista nada mais gosta de fazer do que manipular mercados. E do outro lado, onde se diz que o mercado não é importante, eles estão começando a dar importância também. O mecanismo de mercado não deixa de ser um mecanismo cibernético. As coisas não têm um preço verdadeiro, o preço é sempre uma abstração. Se eu me encontrar agora no deserto do Saara morrendo de sede, eu pagaria 10 quilos de ouro por essa garrafinha de água mineral. Para mim nesse momento ela vale um milhão de dólares. No entanto, aqui não vale nada para mim. O preço portanto é o resultado de um equilíbrio social e da situação do indivíduo. Portanto, o mercado não deixa de ser um mecanismo cibernético de elaboração de preços relativamente justos socialmente. Mas para que o mercado tenho uma significação real é necessário que esteja presente no mercado, de um lado toda a oferta e do outro lado, toda a demanda. Só assim vai se estabelecer um equilíbrio justo entre demanda e oferta. Eu vou especificar o que eu quero dizer através de uma metáfora. Digamos que uma obra de arte como a Monalisa, uma obra de um valor inestimável porque ela é única, insubstituível, estivesse em leilão. Mas presentes ao leilão


[Interrupção no seminário]


É crença generalizada entre os economistas modernos de que o mercado seja um mecanismo cibernético capaz de nos levar a preços socialmente justos. É claro que essa crença diverge um pouco de um lado e do outro. Mas, em geral se aceita que o mercado nos levará a preços, pelos menos socialmente aceitáveis. Eu queria mostras através de uma metáfora que isso não é assim. Que o mercado somente nos dará preços socialmente aceitáveis se ele for completo, isto é, se estiver presente de um lado toda a oferta e de outro lado, toda a demanda; mas isso nunca é assim. Digamos que esteja em leilão uma grande obra de arte, digamos, a Mona Lisa. Mas que na sala do leilão apenas estejam presentes pessoas que nada entendem de arte, pessoas que desprezam a arte. Está presente apenas um conhecedor de arte. Ele acabará comprando a Mona Lisa por 100 ou 200 cruzeiros. E é exatamente isso que hoje acontece com os nossos recursos naturais. Por exemplo, nós estamos vendendo o nosso minério de ferro a um preço ridículo. Estamos arrasando, dando preço zero à floresta Amazônica, porque não tem ninguém que entende daquela maravilha. E os nossos mercados estão sempre, sempre incompletos. Eles têm um perene ausente. As gerações futuras não estão presentes em nossos atuais mercados.


Coordenador – Passamos então às perguntas formuladas pelo nosso auditório. Wainer Nóbrega Gonçalves pergunta: porque os políticos dão apoio à tecnologia e não à geologia? Será por que a ecologia não enche os seus bolsos?

Resposta – Eu não entendi bem essa pergunta. Quem a fez, por favor, se explique melhor....

Exatamente por causa daquilo que eu procurei explanar. Porque os políticos, ou seja, os burocratas, são servos da tecnologia. À medida que eles se derem conta de que com ecologia dá para fazer demagogia, eles vão fazer. E já está acontecendo isso. Já tem muito político que estão fazendo demagogia ecológica.


Pergunta – A cultura humanística não seria a forma mais efetiva de combater a igreja ou cultura tecnológica? O partido ecológico seria outra solução?

Resposta – Eu sou muitas vezes perguntando se eu seria favorável a um partido ecológico. Eu confesso que houve uma época em que eu era favorável. Mas hoje eu acho que um partido ecológico seria muito perniciosa, porque ele seria certamente, muito em breve, o mais forte dos partidos. Então nós estaríamos criando um novo centro de poder, uma nova grande burocracia. E quem é que acabaria dominando essa nova burocracia? Como em todas as grandes burocracias, em todas as grandes estruturas de poder, quem sobre nunca é o mais apto, é sempre o mais safado, o mais bandido. O partido ecológico seria rapidamente dominado pelos políticos profissionais e se transformaria num desastre pior do que se não o tivéssemos. Eu acho que o movimento ecológico tem que ser um movimento de base, descentralizado, com lideranças locais. O cidadão tomando a si a responsabilidade de sua comunidade, é o cidadão defendendo os seus direitos, o cidadão fazendo democracia. Aqueles políticos que lá em Brasília nem sequer assistem a um depoimento, esses nós não devemos mais votar neles. Nós precisamos, enfim, não de um novo partido. É o cidadão começando a pensar por si mesmo e a defender os seus próprios direitos.


Pergunta – Como o senhor vê a evolução industrial dentro dos ecossistemas atuais e qual a contribuição que se poderia dar a esta evolução, uma vez que a revolução industrial não só foi como é uma realidade?

Resposta – Eu quero deixar bem claro que quando eu critico a sociedade industrial eu não estou criticando tecnologia em si. Nós precisamos de tecnologia e sempre vamos precisar de tecnologia. Depende do tipo de tecnologia. Hoje, os centros de poder, não importa o nome. Que a coisa se chame de Ianor Mores ou se chame de partido soviético, não tem diferença, hoje as grandes estruturas de poder promovem aquelas tecnologias que concentram mais poder. As tecnologias que desconcentram, que disseminam capital, que criam autossuficiência local, estas tecnologias não são promovidas, são deixadas de lado, são esquecidas e mesmo combatidas. Vejamos um exemplo; agora se quer resolver o problema do combustível através do álcool. Todo mundo fala de álcool. Mas o que é que se quer fazer realmente? Se quer fazer praticamente uma Alcoolbrás. O que se quer fazer é produzir álcool em grande escala, em grandes lavouras, gigantescas monoculturas, com gigantescos engenhos e com distribuição o mais central possível. Ora quer-se produzir álcool em esquema megatecnológico, seja em esquema tecnocrático. Muita gente vai ficar muito mais rica e muito mais gente vai ficar mais pobre. Esse programa do álcool vai ser um desastre social, porque, em 1º lugar nós vamos alastrar ao resto do país o feudalismo do nordeste. Áreas onde hoje predominam propriedades pequenas ou médias, e em São Paulo já está acontecendo isso em alguns lugares, o pequeno vai ser deslocado para dar lugar ao grande plantador de cana e dono de engenho. O desastre social vai ser pior do que antes. Em 2º lugar, dedicar milhões de hectares de terra fértil à produção de cana ou de álcool é um crime num mundo como o nosso onde 3 quartas partes da população, pelo menos 3 bilhões de pessoas passam fome ou estão mal ou sub-nutridas, dedicar milhões de hectares de terra fértil à produção de álcool para as nossas orgias automobilísticas é um absurdo. Nós precisamos dessa terra para fazer comida, não para fazer álcool. Em 3º lugar, se esse álcool for produzido em esquema megatecnológico em gigantescas usinas, a poluição vai ser violenta, porque o grande, ele persegue dinheiro, não coisas. Ele quer sempre mais dinheiro. Então ele quer ser sempre mais eficiente em termos de dinheiro. A poluição ele só vai controlar se houver pressão social em cima dele, se os governos botarem ele na cadeia, talvez. Mas isso não vai acontecer, porque ele manda nos governos. Então vai aumentar tremendamente a poluição. Basta ver o que estão acontecendo no Rio Piracicaba e outros lá em São Paulo. Eu pessoalmente assisti uma cerimônia religiosa da morte do Rio Piracicaba. Roubaram o Rio e só deixaram a poluição. Em 3º lugar, em 4º lugar, da maneira como eles querem produzir o álcool, em esquema mega tecnológico, provavelmente não vai haver solução energética. Energeticamente vai ser um desastre. O que vocês me diriam de um poço de petróleo em que o petróleo está tão fundo e tão difícil de ser extraído que eu gastasse mais petróleo na bomba do que o petróleo que eu estou retirando. Esse poço não interessa, não é? Quer dizer, esse poço não interessa à sociedade, mas pode interessar a mim. Se a sociedade subvencionar o petróleo do meu motor, então esse poço pode me interessar, porque eu vou ganhar muito dinheiro com ele. Se eu conseguir comprar barato o petróleo do meu motor e vender caro o petróleo que eu tiro, então esse poço vai me interessar, mas ele vai ser um desastre para a sociedade. E o programa do álcool provavelmente vai ser dessa natureza. Nós sabemos hoje que a agricultura moderna, a grande monocultura altamente mecanizada e quimificada, gastam em geral mais energia nos insumos do que a energia que ela fixa na fotossíntese. O agricultor americano, tão admirado por todo mundo, chega a ter em muitas culturas, uma relação 7 para um e algumas vezes até 14 para um. Quer dizer que para cada caloria que ele fixa na fotossíntese em sua lavoura ele está gastando 7 nos insumos. O petróleo que ele gasta nos tratores, a energia que foi gasta para fazer o trator, para fazer o aço e os metais daquele trator, a energia que foi gasta para fazer o pesticida, para fazer o adubo químico e assim por diante, para fazer toda aquela infraestrutura é mais do que a energia que ele capta na fotossíntese. Enquanto ali nós estamos produzindo comida, ainda vai, nós estamos gastando petróleo para fazer comida. Na realidade, nós estamos comendo petróleo. Uma situação insustentável, porque o petróleo vai se acabar. Agora se o que nós queremos é fazer energia, então não interessa gastar mais energia para fazer menos energia. É isso que provavelmente vai acontecer com o programa do álcool. Mas isso não quer dizer que o álcool não seja interessante. Nós devemos usar álcool sim, mas então num outro esquema, num esquema descentralizado, num esquema democrático. Precisamos promover, não as grandes usinas, as micro usinas em poder de gente local, com micro distribuição. Alguns dos tecnocratas já estão até falando de micro usinas. Lá no Rio Grande do Sul eles já levantaram a ideia de fazer micro usinas, mas eles querem macro distribuição, controlada por eles. Nós precisamos de micro usinas e micro distribuição. Cada comunidade vai produzir o seu. O álcool que eu colocar no meu carro deverá ser produzido dentro daquele raio de 10, 15 ou 20 km. Se eu partir para esse tipo de tecnologia, descentralizada, eu não vou fazer lavoura nem de álcool, nem de canas, nem de mandioca, onde o balanço energético, aliás é mais baixo ainda para fazer álcool. Eu vou trabalhar com detritos orgânicos. Quem já sobrevoou este país, e eu estou condenado a estar num avião todas as semanas, sabe que o Brasil queima imbecilmente todos os anos centenas de bilhões de toneladas de biomassa. O que nós destruímos de matéria vegetal, com os incêndios, com as queimadas neste país, é algo nunca visto, é a maior loucura, é a maior orgia suicida que já houve nesse planeta. São centenas de milhões de toneladas de biomassa que nós queimamos imbecilmente sem nenhum sentido, sem nenhuma vantagem para ninguém. Se colhêssemos judiciosamente em esquema sustentável esta biomassa, nós poderíamos produzir álcool, gás metano, ou trabalhar com fornos de pirólise e ter energia pra todo sempre. Não é com grandes programas de álcool que vamos resolver. É com tecnologia democrática.


Pergunta – Com referência à afirmativa de que a existência de um partido ecológico seria a afirmação de um poder majoritário e perigoso, pergunto: na França ocorre que o partido ecológico é minoritário. Por que é?

Resposta – Eu diria que essa pergunta já foi respondida. Mas o partido ecológico é minoritário porque a consciência ecológica ainda não se alastrou suficientemente. Por outro lado, o movimento ecológico não está restrito ao movimento ecológico. E essa é uma das razões porque eu também sou contra o partido ecológico. Enquanto nós formos uma movimentação de base, nós podemos trabalhar com todos os partidos. Eu posso trabalhar como deputado do MDB, da ARENA. Com governantes, com administradores locais, ou estaduais ou federais. No momento em que nós fizermos um partido, nós temos os mesmo inconvenientes dos outros partidos. O dia que eu tiver um partido ecológico, o MDB vai me combater, a ARENA vai me combater. Todos os partidos que surgirem vão me combater. Nós temos que ser uma movimentação de base que atravessa todas as linhas. E felizmente é isso que está acontecendo na Europa. Aqueles partidos que se dizer ecológicos são apenas pequenos grupos dentro de uma movimentação muito maior. Na Alemanha, por exemplo, são 180 grupos que nas eleições locais levantam as tais de listas verdes. Em alguns estados agora já conseguiram uma, não digo uma maioria, mas já conseguiram ser o fiel na balança. Se os planos nucleares do governo alemão estão praticamente liquidados, é porque o público alemão se conscientizou e está lutando. Um programa nuclear que significa dezenas de bilhões de dólares foi destruído, foi praticamente liquidado pela consciência pública, sem que haja necessidade de formas um partido para isso.


Pergunta – O meio ambiente é uma necessidade para o homem. Como o senhor vê as prioridades tecnológicas e políticas acima da prioridade das necessidades ambientais e do próprio homem?

Resposta – Eu diria apenas que uma tecnologia ecológica, que nós no movimento ecológico classificaríamos como uma tecnologia branda ou suave é uma tecnologia que não está em contradição com o ambiente. Ela é anti-antrópica, ela cria mais e mais diversidade de vida. Vou dar um exemplo concreto apenas. Se nós insistirmos em controlar esgotos, por exemplo, com gigantescas estações de tratamento como o projeto SANEGRAN em São Paulo, nós vamos causar tremendos estragos ambientais e sociais. Se nós no entanto trabalharmos em um esquema descentralizado e aí existe todo um leque de possibilidades, nós vamos...


[interrupção]


Irrestrita da tecnologia, como o sr. vê o programa nuclear brasileiro quanto a sua inevitabilidade segundo os tecnocratas, localização, efeito sobre o meio ambiente, etc.?

Resposta – Bom, o assunto nuclear é tão amplo que a gente teria que falar uma tarde inteira. Mas eu vou dizer uma coisa. O programa nuclear brasileiro é a maior imbecilidade da História do Brasil.


Pergunta – Como conseguir o que nos foi aconselhado por uma naturalista – pensar mais e fabricar menos?

Resposta – Eu acho um slogan muito bonito. De fato nós temos que pensar em menos produção e mais contestações hoje, porque o que está acontecendo hoje é um desastre. Então vamos primeiro nos conscientizar do que está acontecendo. Vocês jovens precisam se conscientizar do absurdo que está na base de nossas atuais decisões políticas. Vocês precisam justamente desvendar e contestar esses dogmas que eu levantei agora. Discutir e contestar tecnologia. Agora para isso é necessário que o jovem faça um esforço muito grande. Em 1º lugar vocês têm que deixar de ser ovelha. A ovelha marcha toda contente para o matadouro. Vocês têm que romper as cadeias da especialização. Como eu já disse há pouco, as universidades têm como alvo hoje, criar, fazer perito imbecis. O que se quer é o especialista total, que só entende de uma coisa e não entende nada mais. Nós precisamos é de mais generalistas. Agora por generalista se entende uma pessoa que conhece, que sabe distinguir entre o que é fundamental, o que é genérico e o que é particular. É claro que mesmo dentro da minha especialização, hoje o acervo de conhecimentos é tal que ninguém mais pode sequer ler toda a literatura técnica dentro de uma determinada especialidade, mas se eu souber distinguir entre aquilo que é genérico, o que é fundamental e aquilo que é particular, então com um pouco de esforço e se eu tiver fermento intelectual, coisa muito mais rara hoje, infelizmente, especialmente entre os homens que nunca mais leem um livro, então eu terei condições de conhecer, pelo menos, em todos os ramos do conhecimento humano, aquilo que é fundamental. Terei condições de discutir, com o técnico, com o especialista de qualquer disciplina sem fazer perguntas imbecis. É isso que vocês devem procurar alcançar. Eu sei que para a grande maioria isso é muito difícil. Mas se uns 5 ou 10% conseguirem isso, se aqueles jovens inteligentes e ainda idealistas fizerem um esforço e chegarem a um conhecimento amplo, a um horizonte científico e cultural amplo e pensarem com a própria cabeça, então eu acredito no futuro.


Pergunta – Como utilizar a alta tecnologia moderna a favor do progresso sem alterar em nada a natureza social e ambiental? Como o Brasil sem essa tecnologia irá conseguir um desenvolvimento harmonioso?

Resposta – Mais uma vez talvez seja interessante distinguir entre tecnologia e tecnologia. Não é só por uma tecnologia ser gigante ou sofisticada que ela vai ser social ou ambientalmente perigosa. Existem tecnologias de alta sofisticação que são de grande valor social. Eu tenho aqui na minha pasta uma maquineta, um pequeno computador, HP 25 que é uma verdade maravilha. Um instrumento fantástico, que me permite praticamente não há problema matemático que não me permite resolver. Esse tipo de tecnologia apesar de ser tecnologia de alta sofisticação é ainda o que eu chamaria de uma tecnologia convivial. Porque esse computador que eu tenho aqui no bolso é um instrumento, ele não é máquina. Convém também distinguir entre objeto e máquina. Um instrumento obedece à minha vontade, ele é uma extensão do meu espírito. Ele faz aquilo que eu quero fazer. A máquina me obriga a que eu me adapte ao ritmo dela. Nessa mesma tecnologia na microeletrônica moderna, nós temos um outro ramo: o ramo dos grandes bancos de dados. Ali sim está se preparando o instrumento máximo da dominação tecnocrática e mais uma vez os políticos estão dormindo nas palhas, não estão vendo nada. E está se preparando um instrumento extremamente diabólico. Muito em breve, e talvez antes do ano 1984, terá realmente chegado. Se nós não protestarmos hoje os bancos de dados, a centralização da informação pelos governos e pelos tecnocratas adeus democracia. Nós precisamos distinguir entre tecnologias conviviais, tecnologias que ajudam o indivíduo, que auxiliam a capacidade intelectual do indivíduo, e tecnologias que dominam. Esta tal de banco central de dados é um instrumento de dominação. E nós temos que combatê-lo. Uma máquina de calcular, um pequeno computador de uso pessoal é instrumento de uso convivial, que nós devemos promover. Portanto em cada caso nós precisamos distinguir entre as coisas. Uma usina tipo Itaipu é um tremendo de um instrumento de dominação e de destruição ambiental. Uma pequena usina hidráulica local é um instrumento de liberação daquela comunidade. Agora vocês veem: o tecnocrata é contra a pequena usina e a favor da grande. No Rio Grande do Sul, a Eletrosul foi contra uma barragem de 100 Mhz que poderia muito bem ter atendido 3 cidades locais. O argumento deles foi: “Não, pra que é que nós vamos querer essa barragem, só 100 Mhz, nós vamos trazer a energia elétrica de Itaipu”; Então eles preferem trazer energia elétrica 1000 e poucos km de distância, do que produzi-la localmente. O tecnocrata, se ele pudesse, ele cobria o céu com uma imensa lona plástica, e nos vendia chuva no conta-gotas.


Pergunta – O que o senhor acha sobre o aterro de lama aquática da orla marítima do Rio de Janeiro?

Resposta – O que se pretende lá no Rio, na baía, aquele aterro que se pretende lá é outro paradoxo tecnocrático. Eu não sei quem são os felizes empreiteiros que vão fazer a obra, que vão ficar ricos com aquilo, mas a intenção foi clara. Aquele aterro é totalmente desnecessário e tremendamente pernicioso. Ele vai acabar com os últimos mangues, os últimos manguezais que ainda tem naquela baía. Não vai resolver o problema daquela poluição. Muito pelo contrário: a poluição vai ser pior. O que nós devemos fazer naquele caso é procurar soluções biológicas de integração daquele manguezal inclusive da ampliação dele, no sentido de aproveitar aquele manguezal justamente para o controle biológico dos esgotos e isso é possível, mas requer outro tipo de atitude. Nós precisamos na engenharia sanitária, de uma inversão de enfoques. Hoje, o engenheiro sanitário ele parte de um enfoque muito simples: e muito interessante para ele, mas pernicioso para nós. Ele quer soluções centrais. Por exemplo, uma imensa cidade como São Paulo, ele quer levar todo o esgoto para um só lugar. Em São Paulo estão querendo fazer uma usina para tratamento primário de esgoto de um milhão de pessoas. Imagina levar todo o esgoto daquela imensa cidade que tem diâmetro de quase 100 km para um só lugar. Ele quer soluções centrais. Soluções centrais serão sempre soluções megatecnológicas. Ficam gigantescas obras e exatamente do interesse dele, porque ele vai ganhar rios de dinheiros nas empreitadas. Ele não leva em conta a sofisticação dos sistemas vivos. Quando muito ele falará em bactérias metalogênicas o máximo de sofisticação biológica que ele aceita. Ora nós temos que inverter esse enfoque. Temos que partir da sofisticação do sistema vivo, procurar soluções descentralizadas. Estas serão então soluções simples, baratas e acessíveis. E isso que nós temos que fazer também o caso do Rio de Janeiro. Nós temos que descentralizar aqueles esgotos e procurar trabalhar com aquela natureza, não contra ela. O manguezal é um dos melhores sistemas de depuração biológico que existe. Nós podemos usar o manguezal como purificador biológico do esgoto, mas o que eles vão fazer ali é justamente acabar com esse manguezal, e obrigar a sociedade a pagar uma conta caríssima por isso.


- Apenas um adendo aqui às observações do prof. Lutzenberger, em relação ao manguezal que já não existe mais na favela da Maré onde se pretende fazer esse aterro. Os manguezais ainda existem no fundo da baía de Guanabara, mas na região dessa favela eles estão virtualmente extintos por causa da poluição provocada pelo esgoto eliminou qualquer possibilidade de vida dos manguezais. A outra pergunta é a seguinte –


Pergunta – No fundo da baía de Guanabara existe manguezais, mas na favela da Maré, o manguezal é um lamaçal. Qual a sua sugestão para resolver esses imensos absurdos? O que devemos e podemos fazer para acabar com o domínio tecnocrata?

Resposta – Eu acho que essa pergunta já foi respondida. É só lembrar a necessária conscientização.

- Eu pediria a permissão, como o restante das perguntas gira em torno de temas que já foram respondidos brilhantemente pelo prof. Lutzenberger, passamos à fase seguinte do programa que seria a primeira e passado a palavra ao prof. Paulo Nogueira Neto, que se atrasou, ficou retiro no aeroporto de Congonhas, e na Rio-Petrópolis, num engarrafamento, mas chegou a tempo ainda de nos dar a sua palavra ilustrada. Com a palavra então, o prof. Paulo Nogueira Neto, presidente da SEMA.


*Conferência realizada em 1984., reprodução do APJL.

Texto transcrito por Sara Rocha Fritz.

Postado por Débora Nunes de Sá.



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